Abuso de poder regulatório ou poder regulatório?
A hermenêutica faz a diferença.
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Atualizado às 08:03
O excesso de normas e de legislação é o que comumente se convenciona chamar de barreiras governamentais à entrada, principalmente quando essas regras são impostas nos setores regulados.
O debate em torno do abuso de poder regulatório está em voga no Brasil e essa é a orientação da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Produtividade (SEAE) para a plena vigência da lei de liberdade econômica (lei 13.874/20), tão esperada para um país fundido na intervenção estatal desde os tempos mais remotos.
A criação das agências reguladoras no Brasil teve o seu início na segunda metade dos anos 1990 e veio, como um receituário liberal, como resposta à saída do Estado das atividades empresariais por meio das privatizações dos setores elétrico, de telecomunicações, entre outros.
O argumento utilizado à época era o de que era preciso regular as atividades econômicas nos setores onde existiam falhas de mercado, como por exemplo o monopólio natural, com o intuito de evitar o exercício do abuso de poder de mercado. As onze agências reguladoras criadas passaram a ser regidas por leis próprias sob o manto de uma legislação geral das agências, onde lhe eram conferidas autonomia financeira e administrativa, bem como poder regulatório para atuar nos seus respectivos setores.
De acordo com as legislações de criação das agências reguladoras, essas têm como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria em que regulam. Para a execução das atividades mencionadas, as agências criam normas, portarias e outros atos normativos.
Fazendo uma analogia com o poder de mercado das empresas que, segundo a legislação de defesa da concorrência, não é um ilícito per se, poder-se-ia dizer que, prima facie, o poder regulatório também não é um ilícito, pois ambos os poderes estão insculpidos nas legislações de regência.
Esse é o primeiro ponto que precisa ser observado, o poder regulatório é lícito!!! Partir de uma premissa equivocada, comprometerá todo o raciocínio decorrente. Assim, a não observância desse fato na discussão do tema a compromete, na medida em que condenar uma prática sem que ela seja o motivo da verdadeira barreira à entrada, induz ao cometimento do famoso erro estatístico denominado erro do tipo II.
Mas o que seria o abuso de poder regulatório? Seria o uso indevido pelas agências reguladoras do seu poder para regular, contratar e fiscalizar o setor que lhe foi outorgado pela legislação de sua criação. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que abusar seria criar normas e regras à revelia dos interesses do regulado e do Estado.
Conquanto a criação da legislação seja da autonomia da agência, cabe recurso ao Poder Judiciário quando essas legislações são inconstitucionais. Esse é o instrumento disponível ao regulado para combater o abuso de poder regulatório e a sua lógica deve sempre obedecer ao que está insculpido na Constituição Federal de 1988 no capítulo que trata da ordem econômica.
Também é atribuída a SEAE, via artigo 19 da lei de defesa da concorrência, a competência para se manifestar em todos os atos normativos implementados pelas agências reguladoras que possam ferir a concorrência. Vale mencionar que a competência da SEAE não vai além do que prescreve a lei e a sua diretriz está totalmente baseada no capítulo da Carta Magna que trata da ordem econômica.
Portanto, há um erro de hermenêutica que precisa ser sanado, sob pena do poder regulatório emanado pela legislação vigente e amparada na Constituição Federal ser interpretado como um ato ilícito per se.
Na verdade, não se identifica qualquer abuso de poder regulatório por parte das agências reguladoras. No entanto, caso essa hipótese se verifique, o ordenamento jurídico possui instrumentos para coibir essa prática.
O fato de se ventilar a hipótese de que as agências reguladoras deveriam ter novos e menores limites para normatizar os setores reguladores não quer dizer que os poderes regulatórios então vigentes sejam abusivos. Reduzir o poder regulatório é diferente de combater o seu abuso, de maneira que propagar poder regulatório como se abuso fosse é a mesma coisa que condenar um inocente.
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*Elvino de Carvalho Mendonça é consultor econômico do escritório Mendonça Advocacia.
*Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça é sócia do escritório Mendonça Advocacia.