O caso Mariana Ferrer e a realocação da vítima para o banco dos réus
As implicações jurídico-sociais da sentença do caso Mariana Ferrer e a transferência da vítima para o banco dos réus.
quarta-feira, 18 de novembro de 2020
Atualizado às 13:08
Veio à tona nos últimos dias decisão que absolveu André Aranha, por insuficiência de provas, no caso de estupro contra a influenciadora Mariana Ferrer. Os autos mostram presença de DNA do acusado nas roupas íntimas da vítima e laudo pericial que comprovou a ocorrência da relação sexual que levou a ruptura do hímen. Em que pese tais provas de autoria e materialidade, reconhecidas pelo órgão acusador e pelo juízo, iniciou-se verdadeiro malabarismo argumentativo a fim de inocentar o acusado.
O réu foi denunciado pela suposta prática de estupro de vulnerável, conduta esta que corresponderia, nesse caso, "à conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com alguém que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência", nos termos do artigo 217-A, §1º do Código Penal. Discorre a denúncia que a condição de vulnerabilidade se caracterizaria em virtude de a vítima ter sido dopada por meio de substâncias entorpecentes (trivialmente referida como "boa noite cinderela") a fim de evitar a sua resistência e, assim, facilitar a relação sexual não consentida.
Dentre contradições e tumultos, como a troca de delegados e promotores e as constantes mudanças de versão do depoimento do réu, que durante o inquérito policial alegou "apenas ter ido ao banheiro no local". E, após, subitamente se recorda de que, em verdade, teria consumado a conjunção carnal com a vítima. Sobrevém, a partir de então, alegações finais, sentença e a ignóbil audiência - sendo esta (jurídica e socialmente falando), um show de horrores ímpar.
O que se vislumbra é que o órgão acusador assumiu a função de defesa do acusado, o que, por si só, não seria condenável - desde que feito imparcialmente e atento à um juízo de valor restrito aos fatos. O Ministério Público apresenta, então, a tese de que o acusado não possuía o dolo de estuprar. Diz ser o crime doloso, nos termos do Código Penal, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, fato que, de acordo com o órgão de acusação, não se enquadraria no caso concreto, vez que o acusado supostamente não saberia - e nem teria condições de saber - sobre a incapacidade de consentir da vítima.
Considerando a inexistência do dolo1, trouxe à voga a impossibilidade de condenação do acusado por estupro culposo, considerando este ser crime inexistente. Sendo assim, requereu a absolvição do acusado devido à atipicidade da conduta.
Nem o Ministério Público, nem o magistrado acataram a existência do termo de "estupro culposo", uma vez que a menção desse termo se deu apenas com o objetivo de demonstrar que o acusado não poderia ser punido.
Em sede de sentença, o magistrado utilizou-se da tese de insuficiência de provas para condenação, novamente, seria aceitável se imparcial e com interpretação restrita aos fatos. Segundo sua argumentação, não seria perceptível ao acusado a impossibilidade de consentimento da vítima, fato que retiraria o dolo da conduta, conforme sustentado pelo Ministério Público. Afirma, ainda, que não restou comprovado nos autos a incapacidade da vítima de oferecer resistência ao ato, de modo que a palavra da ofendida seria insuficiente para embasar a condenação. Por esse motivo, proferiu a sentença de absolvição do acusado, com base no artigo 386, VII, do CPP.
O que causa desassossego, entretanto, foram as voltas argumentativas utilizadas - tanto pelo Ministério Público, quanto pelo magistrado - para chegar à tese que ensejou a absolvição.
Questiona-se a decisão de utilizar como meio essencial de convencimento do juízo os depoimentos de testemunhas que afirmam que a ofendida aparentava estar apenas "levemente embriagada" horas antes da ocorrência do crime, bem como, as filmagens escuras que comprovariam que a vítima andava de forma equilibrada até outra balada.
Decidiu-se dar a essas peso maior do que às provas que demonstravam mensagens quase indecifráveis mandadas pela vítima afirmando "não querer aquele boy", as incongruências e alterações no depoimento do acusado que, em sede de inquérito policial alega não possuir qualquer tipo de contato com a vítima, enquanto que, no interrogatório, admite a manutenção da relação sexual oral. De modo que, em que pese o acusado tenha afirmado para outra testemunha que a vítima estaria "muito bêbada", isso não seria suficiente para caracterizar a vulnerabilidade, pois ela não estaria drogada.
Do acompanhamento dos autos, depreende-se que, ao contrário do fundamentado na sentença absolutória, haviam provas suficientes para ensejar a condenação do acusado, as quais foram desprezadas pelo magistrado - e mesmo pelo órgão de acusação.
A argumentação utilizada pelo órgão acusador e pelo magistrado se deu de maneira que, formalmente, não há vícios a serem alegados isoladamente. Contudo, o processo como um todo é acometido por ilicitudes, imoralidades, desvios de ética e, acima de tudo, parte de premissas erradas.Contudo, não podemos nos atentar apenas às formalidades, desconsiderando as implicações jurídicas e sociais sesta decisão que repercutiu e, infelizmente, não é incomum.
De fato, deu-se aos defensores do acusado um prato cheio de argumentos aplicáveis para a absolvição em qualquer caso de estupro de vulnerável, por meio da aplicação analógica da figura do erro de tipo, previsto pelo artigo 20 do Código Penal.
O que chama a atenção é o malabarismo jurídico empregado a fim de abrigar a tese que resultou na absolvição. Sendo assim, o que incita críticas e causa preocupação, portanto, são os precedentes para uma interpretação consternante acerca do estupro de vulnerável. De modo que, se adotarmos a interpretação dada pela sentença absolutória, qualquer indivíduo que alegue "não saber que a vítima não podia consentir" à conjunção carnal incidiria em erro de tipo e, sendo assim, a conduta seria atípica gerando a absolvição do acusado, ainda que exista a palavra da vítima aliada à demais provas em sentido contrário.
A explicação para tal fato se demonstra na prática a partir do caso Mariana Ferrer. Conforme se viu, ainda que se implore "por respeito, no mínimo excelentíssimo" perante um Juízo que sente-se confortável em ignorá-la, em uma sala tomada por outros homens. A vítima é colocada no banco dos réus, tendo sido inquirida, humilhada e desacreditada sob o olhar indiferente dos operadores do direito que estariam ali para intervir.
O advogado de defesa do acusado, que pragueja discurso humilhante, que é "só dele" como gosta de classificar, nomeia a dor da vítima como "showzinho" e que "seu ganha pão é a desgraça dos outros" aliado ao confortável e incentivador silêncio daqueles que consentem com a violência. A inquisição vem travestida de Estado Democrático de Direito, agora com adaptações: ao vivo, virtual e sórdida.
Esquecem eles que, no Brasil, a cada 8 minutos é cometido um estupro, dos quais 57,9% das vítimas têm menos de 13 anos, estando 18,7% delas na faixa dos 5 aos 9 anos de idade, enquanto que 11,2% são crianças de 0 a 4 anos. Contudo, embora os números sejam alarmantes, sabe-se que há uma subnotificação das ocorrências, podendo esse número ser até 10 vezes maior2.
Por aqui, as vítimas de crimes sexuais viram rés, com direito à análise minuciosa de sua personalidade e comportamento, assim como se faz no cálculo da dosimetria da pena de condenados. De modo que o rol de escolhas da mulher vítima de violência se expressa em: quando há denúncia, é desencorajada e humilhada, quando se cala permanece sendo violentada; por vezes - 1.326 vezes somente em 2019 para ser exato - a violência resulta em morte. Aqui, "nem acusados, nem os assassinos são tratados" como Mariana.
Afinal, no Brasil, altos índices de mulheres abandonadas no cárcere pela família não são só coincidência. Uma menina de 10 anos, ameaçada e tratada como assassina após ser estuprada, não é uma questão de opinião. E Mariana Ferrer, vítima, ser humilhada publicamente não é obra do acaso. Tais situações têm em comum o fato de que o destino da mulher é ser abandonada à sua própria sorte, quando - e por quem - deveria ser acolhida e orientada.
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1- Atualmente, e de maneira sucinta, nos termos Paulo César Busato: "a identificação da conduta dolosa passa, pois, primeiro pela verificação do elemento intelectivo e depois pela verificação de um elemento volitivo". No caso, "consciência e vontade". Busato, Paulo César. Direito Penal: parte geral. Vol. 1. 2 ed. São Paulo: Atlas, .P. 411.
2- FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Disponível aqui. Acesso em 05 de out. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível aqui. Acesso em: 04 de out. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Código Penal. Disponível aqui. Acesso em: 03 de out. 2020.
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