O projeto 3.999/20 e os seus impactos nos contratos de locação
O projeto de lei 3.999/20 vem buscando regulamentar o despejo extrajudicial, o que acabará por alterar todo panorama jurídico que buscou-se consolidar até então.
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Atualizado em 9 de dezembro de 2020 16:38
Resumo
Analisando cronologicamente a legislação voltada às questões envolvendo contratos de locação, no que se incluem o projeto de lei 1.179/20, convertido na lei 14.010/20, pode-se perceber que um dos maiores objetivos se estruturou na tentativa de buscar uma solução visando possibilitar a manutenção dos contratos, bem como evitar com que os locatários fossem despejados nesse período crítico decorrente da pandemia, conforme previsão constante no caput do artigo 9º da lei 14.010/20 no qual fora estabelecido que não se concederia liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020. Contudo, contrariamente à proteção que se buscou estender aos locatários, seja no PL 1.179/20, seja na sua conversão na lei 14.010/20, o projeto de lei 3.999/20 vem buscando regulamentar o despejo extrajudicial, o que acabará por alterar todo panorama jurídico que buscou-se consolidar até então, podendo até mesmo desencadear insegurança jurídica, dúvidas sobre conflitos de competência e até mesmo quanto à sua efetividade.
Fundamentação
De acordo com tudo que buscou-se evidenciar desde o início da pandemia, seja com o projeto de lei 1.179/201 no qual fora previsto o Regime Jurídico Emergencial e Transitório e igualmente na sua conversão na lei 14.010/20, que a despeito do veto integral do artigo 9º pelo presidente da República, esse voltou à vigência estabelecendo a impossibilidade de despejo até o dia 30 de outubro de 2020, nas situações constantes no artigo 59 da Lei do Inquilinato, 8.245/91, mais especificamente aquelas insertas no § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, tem-se que o projeto de lei 3.999/20, traz um objetivo completamente distinto da legislação em vigor, ao passo que procura regulamentar o despejo extrajudicial, o que por sua vez, acaba ensejando a necessidade de algumas reflexões por parte dos juristas e dos operadores do direito.
Posto que, a despeito da nobre intenção do legislador Hugo Leal do PSD-RJ de simplificar a retomada do imóvel através de procedimento extrajudicial, com a satisfação célere dos direitos do locador ante eventual inadimplemento dos alugueres por parte do locatário, afastando, pelo menos em um primeiro momento, a intervenção do Poder Judiciário, não restam dúvidas de que o projeto 3.999/20 traz em seu bojo, no mínimo, certa contraditoriedade se comparado a todos os aspectos que até o momento foram levados em consideração para a construção normativa que vem tutelando os contratos de locação, em especial, as situações constantes no artigo 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991.
Pois, ainda que o prazo constante no artigo 9º da lei 14.010/20 - 30 de outubro de 2020 -, já tenha transcorrido, o fato de se buscar a regulamentação extrajudicial do procedimento pode vir a contribuir ainda mais para a insegurança jurídica, especialmente em se considerando que até o dia 30 de outubro não se concebia sequer a concessão de liminar nas ações de despejo, senão vejamos o teor do caput do referido artigo.
Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.
Deste modo, assim como tratamos em artigo anteriormente escrito, entende-se que ainda que o legislador tenha buscado trazer proteção ao locatário, tanto com o PL 1.179/20, quanto com a lei 14.010/20, não se pode olvidar que as responsabilidades assumidas contratualmente não poderão ser ignoradas, uma vez que a norma buscou apenas evitar com que aqueles que foram inadvertidamente prejudicados pela pandemia, fossem despojados dos imóveis nesse momento de tamanha criticidade, não tendo sido por outro lado chancelado o inadimplemento dos contratos.
Nesse sentido, longe de nossa pretensão defender que, tanto o projeto 1.179/20, ou mesmo que a lei 14.010/20 tenham trazido segurança jurídica, considerando o desequilíbrio contratual deflagrado. No entanto, da mesma forma, não se pode desconsiderar que existe um imenso abismo entre o que se buscou tutelar no artigo 9º da lei, pelo menos até o dia 30 de outubro de 2020 e o que se busca regulamentar com o projeto 3.999/20, apresentado pelo deputado Hugo Leal em 30/7/20.
Pois, da simples análise do seu conteúdo, pode-se perceber inicialmente, que a proposta consiste primordialmente na tentativa de simplificação do despejo, ao instituir a modalidade extrajudicial que tem por escopo disciplinar o procedimento através do cartório quando o locatário estiver com o pagamento das locações em atraso e quando não houver acordo entre as partes2.
Ainda que a intenção seja imprimir celeridade à retomada do imóvel, na medida em que dispensa em um primeiro momento a apreciação do Poder Judiciário, sob a alegação de que "a tramitação mais célere dos despejos por falta de pagamento é política pública de urgentíssima implantação"3, além da insegurança jurídica já anteriormente ventilada, tem-se ainda que afastar o Poder Judiciário da apreciação do problema, - que de fato é aquele que possui a competência para a análise da celeuma -, pode até mesmo contribuir para a ocorrência de arbitrariedades e ilegalidades.
Por essa perspectiva, vale enfatizar que inúmeras são as vezes que não são concedidas liminares, mesmo diante da alegação de inadimplemento do contrato de locação, justamente porque não houve o convencimento do juízo quanto a alegação estampada na inicial do processo, o que com a alteração da lei 8.245/91, segundo as proposições trazidas pelo PL 3.999/20, sequer poderiam ser analisadas, uma vez que o procedimento seria, pelo menos até a notificação do locatário, extrajudicial.
Nem se fale ainda na ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, contemplados na Constituição Federal em seu artigo 5º, LV e nas situações em que o locatário que eventualmente desconheça os seus direitos, sequer busque submeter o caso à apreciação do Poder Judiciário por imaginar que por se tratar de um procedimento extrajudicial, não teria esse direito.
Contrariamente a esse entendimento, até se poderia argumentar que o prazo constante no artigo 9º, que previa o dia 30 de outubro de 2020 como termo para que não fosse concedida liminar nas ações de despejo, já teria transcorrido. Por outro lado, inequívoco que, independentemente de todos os esforços empreendidos pelo Poder Público e pelas autoridades sanitárias e de saúde na tentativa de conter a disseminação do vírus através do isolamento social e, até mesmo, dos laboratórios na corrida contra o tempo para o desenvolvimento e produção da vacina, certo que a solução ainda não existe, pois a disseminação continua ocorrendo, assim como inúmeras pessoas continuam morrendo diariamente. Sem contar que, a economia, que consiste na mola propulsora e na grande alavanca que move sociedade, está bem distante de se recuperar.
Ou seja, ainda estamos vivendo a pandemia; a vacinação ainda não ocorreu; e mais do que isso, estamos em um cenário de inegável crise econômica sem precedentes e de total instabilidade que acabaram por contribuir com o desemprego que impactou a vida de inúmeras famílias que dependiam dos seus postos de trabalho para o pagamento de suas despesas mensais, no que se incluem alimentação, vestuário e muitas vezes, os alugueres, situações essas alvo de preocupação durante a construção do projeto de lei 1.179/20 convertido na lei 14.010/20 e que por outro lado, não estão sendo ponderadas no projeto 3.999/20.
Veja-se que, o procedimento evidenciado no projeto de lei que se apresenta como objeto de análise do presente artigo, se mostra bastante simples ao estabelecer que caberá ao locador acompanhado de advogado, a lavratura de ata na qual serão consignados, além do pedido de despejo extrajudicial, as informações sobre o locatário, valores em atraso e o contrato, devendo ocorrer junto ao cartório de ofício de notas, a fim de que, posteriormente, seja realizada a notificação extrajudicial do locatário em até 30 dias corridos4.
Recebida a notificação, será facultado ao locatário (I) a purgação da mora, com o pagamento integral na conta do locador, mantendo-se assim a incolumidade da locação, ou (II) a desocupação do imóvel, sendo que a escolha por uma ou outra alternativa, deverá ser comunicada ao tabelião de notas. Caso a opção seja a desocupação do imóvel, a entrega das chaves deverá ocorrer mediante recibo na própria serventia5.
Por outro lado, depreende-se ainda da análise do projeto, que a omissão do locatário ensejará o despejo compulsório, caso em que a situação poderá vir a ser submetida ao Poder Judiciário.
Assim, além da flagrante insegurança jurídica gerada e da possível alegação de conflito de competência para apreciação da celeuma jurídica, tem-se ainda como inevitável o questionamento sobre a possibilidade de que o referido projeto de lei não traga nada além de inúmeras dúvidas e tumultos na aplicação da norma, sejam esses processuais ou de interpretação legislativa.
Sem contar o risco de ser mais uma dentre tantas outras legislações sem efetividade, tendo em vista a possibilidade de que o locatário busque a proteção dos seus pretensos direitos junto ao Poder Judiciário, não ocorrendo assim, a efetiva desocupação do imóvel extrajudicialmente, conforme pretendido no PL 3.999/20.
Por fim, considerando esses pontos de suma relevância, indispensável se torna a reflexão sobre todos os aspectos que envolvem esse importante instituto do Direito Imobiliário que é a locação, a fim de que não estejamos diante de mais um projeto que, muito embora se proponha aparentemente a apresentar soluções, pode vir a gerar ainda mais impasses na resolução dos casos concretos que, cotidianamente, são enfrentados por aqueles que se encontram no tráfego jurídico dessas relações.
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1 Projeto de lei 1.179/20. Acesso clicando aqui
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*Debora Cristina de Castro da Rocha é advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso.
*Edilson Santos da Rocha é controller jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria - FIEP. Pesquisador pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.