O pragmatismo jurídico e o sistema de justiça brasileiro
Inexistindo critérios absolutos para definir a melhor interpretação, existem casos que simplesmente não há respostas corretas, visto que a incerteza na decisão judicial decorre da incerteza da verdade dos fatos alegados e não propriamente da incerteza do direito.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Atualizado em 9 de novembro de 2020 07:57
O modelo judicial brasileiro vem sendo reconstruído sob um prisma de concretude que visa muito mais traduzir aspectos práticos produzidos através da tomada de decisão judicial, do que meramente discursivos ou mesmos no campo das elucubrações e hipóteses.
Para tanto, nota-se a visível influência do denominado pensamento jurídico-pragmático, o qual, a despeito de remontar séculos anteriores, tem como um de seus precursores mais contemporâneos o jurista norte-americano Richard Allen Posner.
Valendo-se de uma pesquisa eminentemente bibliográfica e por meio do método dedutivo de tratamento das ideias, será abordado neste trabalho a evolução desta corrente jurídica, desde a análise do próprio termo "pragmatismo", seus principais expoentes e a doutrina posneriana aplicada no ordenamento jurídico.
Seguidamente, demonstrar-se-á como o modelo decisional brasileiro importou do sistema norte-americano da "Common Law" institutos norteadores para a aplicação da teoria do pragmatismo jurídico em seu puro aspecto no âmbito do Poder Judiciário do Brasil, cuja estrutura se baseia precipuamente nos ditames da "Civil Law".
Por fim, possível será a visualização do legado de Richard Posner para o esquema judicial nacional, destacando-se espécies legislativas e decisões judiciais da Suprema Corte brasileira (STF), onde se constatará o modus operandi do próprio pragmatismo na prestação jurisdicional.
1- O pensamento Jurídico-Pragmático
Para se entender o pensamento pragmático aplicado às Ciências Jurídicas, mister, inicialmente, a análise etimológica ou taxonômica da raiz da palavra "pragmático".
A rigor, o termo "pragma", extraído da Grécia classicista remonta a uma "concreta realidade". Charles Sanders Peirce utilizou-se desse termo para fundar sua teoria jurídica filosófica acerca do pragmatismo, o qual consiste em analisar as crenças humanas como hábitos da mente, ou seja, algo que move as pessoas à ação, conforme referem Eisenberg e Pogrebinschi.1
Pode-se ainda dizer inclusive que
o ambiente pragmático já é visível na Odisseia (...) a piedade de Odisseu é pragmática porque sua religião é naturalística (é simplesmente o meio mais eficaz conhecido pela sociedade dele para controlar o meio ambiente, exatamente como a ciência e tecnologia são os meios mais eficazes pelos quais pessoas modernas controlam seu ambiente).2
Percebe-se que com o passar das eras, o pragmatismo foi explicado maximamente à luz de seu expositor. Neste sentido, no plano jurídico, o norte-americano Ricard Allen Posner, a partir dos anos de 1980 se vale do sobretido pragmatismo, partindo para o exame de proposições devido às consequências e conformidades com as necessidades humanas e sociais.
Pragmatistas não duvidam que 'verdadeiro' e 'falso' são significativamente atribuídos à proposições, mas, consistente com ênfase nas consequências; eles gostam de dizer que uma proposição é verdadeira ('verdadeira o suficiente para ser mais preciso) se as consequências que prevê ou implica, de fato ocorrerem.3
Em sua obra "A problemática da teoria moral e jurídica", Posner discorre acerca do modo como a Teoria do Direito se mostra impregnada por teorias morais, quando, na verdade, o mesmo autor defende que:
O pragmatismo significa olhar para os problemas concretamente, experimentalmente, sem ilusões, com plena consciência do "caráter local" do conhecimento humano, da dificuldade das traduções entre culturas, da inalcançabilidade da "verdade", da consequente importância de manter abertos diferentes caminhos de investigação, do fato de esta última depender da cultura e das instituições sociais e, acima de tudo, da insistência em que o pensamento e ação sociais sejam válidos como instrumentos a serviço de objetivos humanos tido em alto apreço, e não como fins em si mesmos.4
Nota-se um certo caráter desilusionista proposto por Posner, o qual visa desnudar e purificar o pensamento pragmático, a fim de solucionar problemas práticos, concretos, logicamente sem perder o contato com outros ramos do conhecimento.
Defende-se, em verdade, para a atividade judicante que os magistrados devem examinar um caso jurídico apresentando deduções argumentativas para a exata operação e aplicação do direito.
Este pensamento pragmatista-jurídico(legal) posneriano volta-se para o cotidiano, o "dia a dia", valendo-se do senso comum para resolver problemas, com intrínseco atrelamento à uma visão prática das ações para alcançar certa finalidade.
O pragmatismo legal envolve considerações de consequências sistêmicas; O critério final de adjudicação pragmática é a razoabilidade; (...) Pragmatismo legal é empirista; (...) Pragmatismo legal é hostil à ideia de usar a moral abstrata e a teoria política para guiar a elaboração da decisão judicial; (...) O juiz pragmático tende a favorecer bases estreitas sobre amplas decisões nas fases iniciais da evolução de uma doutrina jurídica; (...) O pragmatismo legal não é um suplemento para o formalismo, e assim é distinto do positivismo de Hart; (...) O pragmatismo legal é simpático para com a concepção sofística e aristotélica da retórica como um modo de raciocínio; (...) O pragmatismo legal é diferente dos estudos do realismo jurídico; (...) Um bom juiz pragmático tentará pesar as boas consequências da constante adesão às virtudes do império da lei.5
Pode-se dizer que Posner igualmente reconhece em há situações abertas/lacunosas, não preenchidas pelo positivismo jurídico, em que os juízes se valem da discricionariedade para elaborar suas decisões extraindo normas com base em seus valores. No entanto, a partir do momento que assim agem, acabam por se retirar do âmbito do direito propriamente.
Neste contexto, o direito advém de decisões/discussões oriundas de processos judiciários as quais por vezes não são necessariamente fulcradas nas tradicionais fontes positivistas, de maneira que os julgadores podem se deslocar para além de tais fontes, valendo-se, por exemplo, da teoria moral. Todavia, enquanto houver opções positivistas, estas apenas devem ser consideradas se forem melhores que as outras alternativas. Segue-se, portanto, a árdua tarefa de selecionar qual o melhor caminho/discurso a ser adotado no caso concreto.
O sentido oficial do processo judiciário, para concentrarmo-nos num dos modos mais importantes do discurso judicial, é o de instrumento de composição deu ma lide. Sob o ponto de vista da situação comunicativa discursiva, diríamos que se trata de uma relação entre diversos partícipes, cujo sentido é a representação da busca de uma decisão, de acordo com certas regras.6
Segue Posner:
os magistrados e outros tomadores de decisões devem pensar sempre em termos de consequências, sem levar a sério a retórica do formalismo legal e sem esquentar a cabeça com a filosofia pragmática.7
Percebe-se a feição prática que Posner imprime à prestação do serviço jurisdicional que seja alheio tanto ao formalismo da lei como ao pragmatismo filosófico, revelando, contudo, muitas vezes ser possível que obrigações morais possam ser inclusive confundidas com obrigações jurídicas, o que de certa forma levaria a pensar que o direito fundamenta a moral, embora defenda-se que a moralidade em nada toca a decisão (devendo esta atingir sua finalidade utilitarista).
Mais detidamente, considerando que a prestação jurisdicional se mostra como uma atividade de cunho textual, uma vez o decisor supera a aplicação da positivação normativa, pode-se gerar a impressão de que esteja adentrando na esfera da moral. Em verdade, os magistrados não carecem de tomar posições em pontos morais, até porque eventuais considerações de cunho moral são subdivisões das pontuações úteis e válidas para o pensamento judicante.
Obviamente, não se pode olvidar que perpetuamente o julgador se depara com problemas cuja resolução vai além do texto positivado, todavia, tal não resulta na conclusão de que se enfrenta um "dilema moral". Neste ponto, de acordo com Posner, a teoria moral pode ser usada pelos juízes se eles assim entenderem pertinente.
A abordagem judicial pragmática de Posner enquanto teoria normativa atribui às consequências práticas das decisões judiciais um fator decisivo nas considerações dos juízes.8
Seguindo este raciocínio, Posner também destaca que as teorias jurídicas em princípio são ambiciosas quando buscam abranger outras áreas como a economia, a teoria pública ou moral para regular as decisões judiciais.9
É certo que no pensamento jurídico-pragmático posneriano, dá-se grande relevância aos aspectos práticos, às consequências concretas, aos resultados realizados/realizáveis, fruto de um "decisum". Mas isto não significa atribuir um aspecto puro e simplesmente consequencialista, pois, verba gratia, em um caso de abuso sexual onde inexiste controvérsia teórica, porém, pode haver divergência quanto à percepção dos danos causados à vitima.
Aliás, segue Poster afirmando não conhecer
nenhum pragmático que se considere consequencialista, mas dois notáveis precursores, Bentham10 e Stuart Mill11 foram, e não há dúvida de que o pragmatismo está mais perto do consequencialismo do que da deontologia.12
Pontua ainda que
a tomada de decisões judiciais é uma forma truncada de consequencialismo. Certamente o vasto número de decisões judiciais que são genuinamente interpretativas não são consequencialistas, no sentido comum da palavra.13
Destaque-se que:
i) o pragmatismo deve ser entendido como a disposição de basear as decisões públicas em fatos e consequências, não em conceitualismos e generalizações e; ii) os juízes pragmatistas sempre tentam fazer o melhor possível em vista do presente e do futuro, irrefreados pelo sentido de terem o dever de assegurar a coerência de princípios com o que outras autoridades fizeram no passado.14
Em verdade, aquele julgador tido como um tradicional-positivista tem para si a preocupação de manter a coerência com decisões anteriores e respeito às fontes do direito. Já o julgador pragmatista só se ocupa em assegurar a coerência com o passado na medida em que a decisão de acordo com os precedentes seja o melhor método para a produção de melhores resultados para o futuro.15
Isto, porém, não resulta em concluir que o juiz pragmatista não possua interesse, por exemplo, pela jurisprudência, legislação ou outros modos de revelação do direito, mas apenas que ele deterá outras prioridades. O modo de ver do decisor pragmatista será de que essas fontes se mostram como umas dentre outras várias informações passíveis de utilização quando da elaboração da decisão judicial, não havendo relação de dependência para com as mesmas a fim de se chegar a um desiderato.
Há ainda críticos do pensamento jurídico-pragmático de Posner, como aqueles que aduzem ser a visão de Posner uma mera releitura filosófica vazia e cotidiana sobre o pragmatismo, haja vista não comportar nenhuma forma racional de decisão por parte dos juízes.16
Dirige-se igualmente a ideia de que o modo de agir posneriano seria muito mais uma conduta tida como "antipragmática" a partir do momento que há rejeição de conceitos, como da moral ou mesmo da política.17
Entretanto, deflui-se da corrente ora em análise que, a despeito de outros doutrinadores afirmarem que Posner não identificaria exatamente quais seriam os fins promovidos pelo juiz pragmático, tem-se que, na verdade, a ideia é de que o julgador possui sua própria linha de raciocínio sobre as necessidades e interesses da mesma comunidade, de modo que sopesará distintamente as consequências/fins de sua decisão.
Não se trata de não se poder atribuir verdades ou falsidades quando do julgamento, no entanto, a decisão deve ser realizada da descoberta do que ocorreu, descabendo a espera pela verdade.
Logo, inexistindo critérios absolutos para definir a melhor interpretação, existem casos que simplesmente não há respostas corretas, visto que a incerteza na decisão judicial decorre da incerteza da verdade dos fatos alegados e não propriamente da incerteza do direito.
- Clique aqui para ler a íntegra do artigo.
_________
1- EISENBERG, J; POGREBINSCHI, T. Pragmatismo, direito e política. Rio de Janeiro: Dados Revista de Ciências Sociais, 2002, p. 107.
2- POSNER, Richard A. Law, pragmatism, and democracy. United States of America. First Harvard University Press paperback edition: 2005, p. 27
3- Idem, p. 6.
4- POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, pp. 358 e 380.
5- POSNER, Richard A. Law, pragmatism, and democracy. United States of America. First Harvard University Press paperback edition: 2005, p. 63.
6- FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação: Subsídios para uma Pragmática do Discurso Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 73/74.
7- POSNER, Richard A. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 299.
8- POSNER, Richard A..A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 358.
9- Vide POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
10- O londrino iluminista Jeremy Bentham foi considerado um relevante jurista de sua época, tendo idealizado a elaboração de um sistema de filosofia moral com um viés concreto, vale dizer, preocupando-se em realizar soluções práticas para a sociedade.
11- John Stuart Mill, igualmente londrino, consagrou-se como filósofo e economista de referência, tendo advogado o utilitarismo, esta como sendo uma teoria ética pugnada de início por seu padrinho Jeremy Bentham.
12- POSNER, Richard A. Law, pragmatism, and democracy. United States of America. First Harvard University Press paperback edition: 2005, p. 65.
13- Ibidem.
14- POSNER, Richard A.. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 380.
15- Op.Cit., 2012.
16- Cf. SULLIVAN, Michael. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2007.
17- Ibidem.
__________
*Hioman Imperiano de Souza é doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Escola Superior da Magistratura (ESMA/PB) e Fundação Superior do Ministério Público (FESMIP/PB). Magistrado instrutor do Tribunal de Justiça da Paraíba. Pesquisador e Professor universitário de Graduação e Pós-Graduação em Direito (FTM/EESAP).