Confiança legítima como parâmetro de interpretação contratual
As circunstâncias e o contexto em que um contrato é celebrado tem, cada vez mais, se mostrado relevante, para isso a manutenção da confiança das partes passa a ser parâmetro de interpretação.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Atualizado às 09:42
O estabelecimento de uma relação contratual se dá em conformidade com a capacidade informacional disponível ao tempo de sua pactuação (ou eventualmente, tratativas preliminares1). Ainda que se admita uma certa assimetria informacional entre as partes contratantes, esta será refletida na própria mensuração dos riscos e valores vertidos no liame formado.
Nessa esteira, temos que os contratos, por estarem inseridos em uma realidade e refletirem um limite (natural ou por opção) na fixação dos riscos dimensionados aos quais a relação contratual estará sujeita, são formalizados a partir do que a doutrina denomina como base objetiva.
Como se analisará no curso deste breve estudo (que de longe não pretende exaurir ou aprofundar adequadamente diversos conceitos jurídicos e econômicos que serão mencionados, por sua restrição de escopo), as bases objetivas dos contratos refletem circunstâncias conhecidas pelas partes - novamente, sem desconsiderar a existência inexpurgável de assimetrias informacionais - que caracterizam o racional do contrato por elas firmado.
Tendo em mente a realidade brasileira marcada por flutuações econômicas substanciais desde o processo de redemocratização (assim como nos períodos anteriores), com a experimentação de hiperinflação, alteração da moeda corrente, crises de abastecimento de energia elétrica, crises sociopolíticas e, atualmente, a pandemia - que, na realidade, consiste em elemento agravador da crise estabelecida desde meados de 2013.
Diante de um contexto econômico caraterizado por crises de dimensões incertas, emerge o questionamento do impacto de alterações bruscas, como a havida a partir de meados de 2013, às relações contratuais formadas em cenários anteriores, nos quais estudos econômicos nacionais e estrangeiros apontavam projeções de ascensão da economia nacional e, por consequência, de perfis de demanda cada vez mais favoráveis à expansão de determinados segmentos econômicos (p.ex., bens de consumo). Quando agregamos a esse questionamento a relevância dada à boa-fé por nosso ordenamento (artigo 113 do Código Civil), mais intrigante se mostra a busca por soluções possíveis a um possível empasse tendente a afetar o desempenho ordinário de uma relação contratual.
Esse questionamento, agregado ao ditame da boa-fé, norteará este artigo, que tem como parte inicial a retomada dos conceitos de base objetiva do contrato e do dever de boa-fé, a fim de ingressar em breve análise sobre os arranjos econômicos elementares de uma relação para, ao fim, buscar concluir para a correlação existente entre esses três elementos.
Fixação conceitual: base objetiva e dever de boa-fé à luz do direito brasileiro
A concepção de contrato no ordenamento brasileiro passou por sensível modificação ao longo dos últimos anos, espelhando as alterações introduzidas na forma de atuação dos agentes econômicos e, especialmente, do Estado, com a adoção de pressupostos mais aderentes à função social e, como defende Ricardo Marcondes Martins2, a constitucionalização do direito privado, a partir do diagnóstico de estarem os princípios típicos do direito público sendo aplicados às relações privadas, tal como sua função social e proteção ao equilíbrio da relação3.
Nessa esteira de aperfeiçoamento da noção de contrato inserido em um contexto social, tem-se o campo da análise das relações contratuais pela ótica econômica em conjunção com a jurídica, como proposto pela teoria da Análise Econômica do Direito ("AED"). A complexidade das diversas relações contratuais diante da supra exposta concepção contemporânea de contrato, traz à tona a função econômica desses instrumentos, que transcende a lógica jurídica clássica de função única de circulação de bens e serviços, passando a comportar a ideia de serem os contratos também imbuídos da função de geradores de riquezas enquanto mecanismo que comporta os excedentes das trocas entre as partes contratantes. Isso porque, como esclarecem Antônio Maristrello Porto e Nuno Garoupa:
A ideia de excedente econômico é de fundamental importância para a análise econômica. De maneira bastante simplificada, é possível dizer que é o mesmo que riqueza. E igualmente possível de dizer que a ideia de excedente econômico serve como medida do bem-estar. As partes de um contrato estão, de regra, em melhor posição quando, de maneira voluntária, anuem com seus termos (do contrário, não haveriam contratado). Contratos, dessa maneira, criam riqueza e aumentam o bem-estar dos contratantes.4
Bem por isso, a noção de base objetiva do contrato ganha relevo, na medida em que se torna indispensável, para a efetivação da função econômica do contrato, a contemplação na interpretação do negócio "o complexo de circunstâncias externas ao negócio, cuja persistência deve ser razoavelmente pressuposta para que se mantenha o escopo do contrato".5
De fato, a intangibilidade da base objetiva de um contrato pauta desde sua estruturação até sua extinção, em especial no tocante ao dimensionamento dos chamados custos de transação, uma vez que, como ponderado por Ronald Coase ao observar a dinâmica econômica dos contratos6.
Por isso, como alerta Rodrigo Fernandes Rebouças, firmado um contrato e estabilizada sua base objetiva, sua posterior interpretação e/ou pretensão de revisão no exercício de atividade jurisdicional, atrai relevante responsabilidade ao Estado Juiz (ou árbitro), "pois a sua revisão implicará em possível alteração da base objetiva do negócio jurídico, elevação do custos de transação e no consequente repasse de valores para toda a sociedade na hipótese da elevação do custo de transação e dos riscos econômico-financeiros que as partes estão expostas"7.
Ancora esse alerta, ademais, o dever de boa-fé, que fundamenta a confiança legítima norteadora das relações negociais, imposto às partes ao longo de todo o iter contratual, conforme previsto pelo artigo 113 do Código Civil, como mecanismo de harmonização da autonomia privada - instrumentalizada pelos negócios jurídicos - e as expectativas a partir deles geradas. Essa dinâmica de coimplicação é defendida por Judith Martins-Costa da seguinte forma:
Por consequência, afirma-se que o ato de autonomia, nascido do poder de autorregulamentação dos próprios interesses e da garantia (constitucionalmente assentada) da liberdade de iniciativa é também um ato gerador de expectativas legítimas, o que importa correspectivamente, em autorresponsabilidade, a necessária e inafastável contrapartida da autonomia.
No que tange, portanto, às relações que nascem de negócios jurídicos, não há oposição entre os princípios da autonomia privada e da confiança. Ambos atuam conjugadamente: à declaração negocial é atribuído um valor autônomo, desligado da vontade como ato psicológico, porém não mais um valor 'objetivo e geral', como nas formulações objetivistas da Teoria da Declaração, mas sim aquele que o declaratário podia retirar da declaração segundo os critérios da boa-fé, finalidade do negócio, as práticas eventualmente seguidas pelas partes, os usos do setor econômico em que inserido o negócio, bem como das demais circunstâncias (normativas e fáticas) do caso.8
Assim, a análise detida e, principal, de forma sistêmica, da concepção contemporânea do contrato, evidencia sua função como instrumento de autorregulamentação de relações privadas dirigidas à geração de riquezas, sendo sua estabilidade e proteção às legitimas expectativas criadas a partir de sua celebração (ou mesmo atos preparatórios). De tal modo que, qualquer forma de intervenção externa se mostra potencialmente hábil a vulnerar a base objetiva do negócio jurídico e, por consequência, a majoração dos custos de transação a ele relacionados.
Conclusão
Como visto, a concepção de contrato passou por alteração significativa, atendendo, pela visão contemporânea norteada pela AED, também à função econômica inerente a formação de um negócio jurídico.
Nesse contexto, a preservação da confiança entre as partes contratantes, como expressão da boa-fé e mecanismo de contenção da autonomia privada, consiste em parâmetro elementar para o encaminhamento de todo o iter contratual. Motivo que também revela a ampliação da responsabilidade implicada ao exercício das atividades jurisdicionais direcionadas à interpretação e, com mais vigor, revisão de um negócio jurídico.
Mesmo que se assuma o aprofundamento e coerência de tal concepção dos contratos, a realidade ainda se mostra recheada de casos que permitem tão somente a conclusão de estarmos, ainda, em processo evolutivo da forma de coexistência entre o direito e a economia, em especial no que se refere ao desenrolar de intervenções heterônomas (como a judicial ou arbitral), cuja mensuração econômica é dada pela avaliação dos custos de transação embutidos em cada negócio jurídico pactuado.
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1- Considerando a possibilidade de ser admitida qualquer aspecto de força vinculante a essa espécie de negócio jurídico.
2- MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 122-123.
3- Essa é também a conclusão de Gustavo Tepedino e Carlos Nelson Konder ao tratarem da concepção de contratos: Com as transformações pelas quais passou o direito civil ao longo do século XX, buscando conciliar a tutela individual da liberdade com o atendimento aos imperativos sociais de solidariedade, atenuaram a ênfase no papel da vontade na construção do conceito de contrato. Ao dar prioridade à perspectiva funcional do contrato ("para que serve") sobre sua análise estrutural ("como é"), sobressai na concepção desse instituto sua função preceptiva ou normativa: o contrato como instrumento de autorregulação de interesses. Assim, ainda que o contrato incorpore o acordo de vontades em sua estrutura, como seu fato gerador, é a função de autorregulação de interesses que se torna objeto de atenção prioritária do intérprete. Por outro lado, o contrato não é o único instrumento de autonomia negocial disponível no ordenamento, razão pela qual se torna necessário individualizar seus caracteres distintivos, extremando-o de outras figuras. (TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos de Direito Civil. Volume 3. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2020. P. 5)
4- PORTO, Antônio Maristrello; GAROUPA, Nuno. Curso de Análise Econômica do Direito. Rio de Janeiro: Gen e FGV Direito Rio, 2020. P. 190.
5- NERY Junior, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: RT, 2013. P. 644.
6- A fim de efetuar uma transação no mercado, é necessário descobrir com quem se deseja fazer a transação, informar às pessoas que se quer fazer a transação e em que termos, conduzir negociações que levam a um acordo, redigir o contrato, realizar a inspeção necessária para assegurar que os termos do contrato estão sendo cumpridos, e assim por diante. Com frequência, estas operações são extremamente dispendiosas, ou, de qualquer modo, custosas o suficiente para inviabilizar muitas operações que seriam realizadas em um mundo no qual o sistema de determinação de preços funcionasse sem custos.
(...) Uma vez que se levem em conta os custos de realização de transações de mercado, é claro que essa realocação dos direitos só ocorrerá se o aumento do valor da produção como consequência do rearranjo for menor do que os custos incorridos para implementá-lo. Quando tal aumento for menor do que s custos, a concessão de uma ordem judicial (ou o conhecimento de que seria concedida), ou a obrigação de pagar pelos danos, podem ter como resultado o encerramento de uma atividade (ou podem impedir que seja iniciada) que seria empreendida se as transações de mercado ocorressem sem custo. Nessas condições, a delimitação inicial de direitos tem sim efeitos sobre a eficiência com que o sistema econômico opera. Um determinado arranjo de direitos pode propiciar um valor de produção maior do que qualquer outro (COASE, Ronald. A firma, o mercado e o direito. Rio de Janeiro: Gen, 2016. P. 115)
7- REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a Análise Econômica do Contrato. São Paulo: Almedina, 2017. P. 105
8- MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. Critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. P. 251
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*Deise da Silva Oliveira, advogada do escritório LO Baptista Advogados, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP.