Crianças e adolescentes na LGPD: Bases legais aplicáveis
Quais bases legais podem ser aplicadas ao se tratar dados de crianças e adolescentes? O melhor interesse, entendido como direito fundamental e princípio interpretativo, é imprescindível nessa análise
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Atualizado às 13:58
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) acaba de entrar em vigor e, com ela, novas regras para a proteção de dados de crianças e adolescentes no Brasil. Em um contexto de hiperconectividade e datificação da infância, o art. 14 da lei tem a potencialidade de mitigar diversos riscos enfrentados por essas pessoas, especialmente no ambiente digital.
Durante muito tempo, o foco da discussão acadêmica acerca do art. 14 estava na regra sobre consentimento, estabelecida em seu § 1º, da qual surgiram diversas questões relacionadas à sua interpretação e implementação. Como harmonizar essa regra com o regime das incapacidades do Código Civil Brasileiro? Teria o legislador esquecido dos adolescentes? Como saber se o consentimento adveio, de fato, do responsável legal? Estariam os pais ou responsáveis mais aptos a consentir que seus filhos? Como conciliar, na prática, o consentimento dado por um adolescente para tratamento de dados com a representação ou assistência em contratos digitais?
Ainda no caminho de encontrarmos respostas a tais perguntas, hoje, nos deparamos com outra discussão ainda mais complexa: quais bases legais podem ser aplicadas para tratar dados de crianças e adolescentes? O art. 14 da LGPD, único a dispor sobre esse tipo de tratamento de dados, não traz regra explícita acerca dessa questão, tendo versado apenas sobre o consentimento. Nesse sentido, algumas interpretações possíveis têm surgido.
Uma primeira leitura seria a de que o art. 14 deve ser entendido restritivamente, de modo que as únicas bases legais possíveis para tratar dados de crianças e adolescentes seriam aquelas presentes no § 1º e § 3º do dispositivo. Em um outro extremo, há a possibilidade de que todas as bases legais presentes no art. 7º possam ser empregadas, mas, no momento de sua aplicação, seria necessário fazer uma análise do melhor interesse, segundo o caput do art. 14. Por fim, há ainda a defesa de que dados de crianças e adolescentes devem ser considerados dados sensíveis, a fim de que se aplique as bases legais do art. 11 e não as do art. 7º, da LGPD.
Tendo em vista essas possibilidades, esse texto tem como objetivo dar um passo atrás e compreender como o melhor interesse, presente no caput do art. 14 e na Convenção sobre os Direitos da Criança (a Convenção entente criança como pessoa de até 18 anos incompletos), deve ser utilizado para interpretar a LGPD e para definir as bases legais aplicáveis. Esse entendimento tem se mostrado crucial em um cenário em que se confia cada vez menos no consentimento como base legal para tratar dados. A partir disso, objetiva-se apresentar uma quarta via possível de interpretação.
No ordenamento jurídico brasileiro, o melhor interesse da criança anda em conjunto com a doutrina da proteção integral, presente no art. 227 na Constituição Federal, segundo a qual os direitos de crianças e adolescentes devem ser assegurados, com absoluta prioridade, pela família, pela sociedade e pelo Estado. O Comentário Geral 14, do Comitê sobre os Direitos da Criança, busca aprofundar a interpretação acerca do melhor interesse, conceito que visa a assegurar a fruição plena e efetiva de todos os direitos reconhecidos na Convenção, bem como o desenvolvimento global da criança, de modo a garantir sua integridade física, psicológica, moral e espiritual e a promover sua dignidade humana. É um conceito complexo, que, preferencialmente, deve ser analisado caso a caso. Contudo, nas decisões coletivas, como as que emanam do art. 14, da LGPD, o Comitê entende que o melhor interesse deve ser avaliado e determinado à luz das circunstâncias do grupo específico ou das crianças em geral.
Ainda segundo o Comitê, o melhor interesse pode ser entendido como um direito fundamental, um princípio de interpretação e uma regra de procedimento. Os dois primeiros entendimentos são fundamentais para a interpretação que se busca fazer aqui. Nesse sentido, crianças têm o direito fundamental a que seu melhor interesse seja avaliado e constitua uma consideração primordial quando estejam diferentes interesses em jogo, bem como a garantia de que este direito será aplicado sempre que se tenha de tomar uma decisão que afete uma criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral. Como princípio jurídico fundamentalmente interpretativo, de acordo com o Comitê, significa que se uma disposição jurídica estiver aberta a mais do que uma interpretação, deve ser escolhida a que efetivamente melhor satisfaça o melhor interesse da criança. Por fim, como regra de procedimento, sempre que é tomada uma decisão que afeta uma determinada criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral, o processo de tomada de decisão deve incluir uma avaliação de seu possível impacto - regra de onde se poderia tirar, por exemplo, a obrigação de se elaborar Relatórios de Impacto à Proteção de Dados Pessoais quando dados de crianças e adolescentes são tratados.
A partir desse entendimento, é fácil perceber que diversas bases legais presentes no art. 7º, da LGPD, têm o potencial de concretizar o melhor interesse e que os §§ 1º e 3º, do art. 14, não dão conta das situações fáticas, nas quais os dados de crianças e adolescentes deverão ser tratados para essa efetivação. Exemplo claro pode ser visualizado quando, no âmbito de políticas públicas, dados de crianças e adolescentes devem ser tratados para que seu direito à educação seja concretizado. Uma vez que a educação é obrigatória no Brasil, a base do consentimento não seria adequada, já que esta pressupõe uma escolha e autonomia por parte do titular de dados ou de seu responsável legal. Assim, seria possível utilizar a base legal presente no inciso III, do art. 7º, da LGPD, desde que esse tratamento esteja de acordo com a consideração primordial do melhor interesse.
Nítida também é a importância de se tratar dados para a proteção da vida ou da incolumidade física (inciso VII) e para a tutela de sua saúde (inciso VIII), hipóteses autorizativas que definitivamente podem ser utilizadas para garantir seu melhor interesse. Esse exercício pode e deve ser feito com cada uma das bases legais do art. 7º, a partir do qual perceber-se-á que a maior parte delas poderá garantir os direitos presentes na Convenção sobre os Direitos da Criança, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), desde que ancoradas no melhor interesse. Isso, por si só, já poderia enfraquecer a primeira interpretação citada, segundo a qual o art. 14 seria suficiente para lidar com todas situações nas quais será necessário tratar dados de crianças e adolescentes.
Por outro lado, isso não quer dizer que todas as bases legais do art. 7º poderiam ser aplicadas, dado que o potencial de concretizar o melhor interesse pode restar prejudicado, quando se trata do legítimo interesse e da proteção ao crédito. Essas são bases legais extremamente flexíveis, o que permite que o agente reutilize dados para outras finalidades, sem que os titulares necessariamente tenham conhecimento. Isso pode colocar em xeque, por exemplo, a transparência necessária para avaliar o melhor interesse em cada caso. Visto que os próprios agentes de tratamento poderiam interpretar o que significa o melhor interesse em concreto, caberia à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ou ao judiciário uma análise apenas a posteriori - o que pode ser bastante arriscado em bases legais tão amplas.
No que se refere ao legítimo interesse, inclusive, há uma exceção expressa à sua utilização no art. 7º, IX, quando "prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais". Esse é justamente o caso, quando se entende o melhor interesse como direito fundamental de consideração primordial - principalmente quando se leva em conta que o legítimo interesse poderá ser de terceiro, conforme a LGPD. Já a proteção ao crédito é uma base ainda mais problemática, uma vez que o interesse do agente de tratamento, neste contexto, é intrinsecamente financeiro, o que não pode se sobrepor à privacidade e à proteção dos dados de crianças e adolescentes, cuja tutela é essencial para a concretização de outros direitos fundamentais.
Assim, visto que a LGPD não traz menção explícita sobre quais bases legais devem ser utilizadas para tratar dados de crianças e adolescentes, é imprescindível lançar mão do melhor interesse como direito fundamental e como princípio interpretativo, afastando, de plano, a aplicação dos incisos IX e X do art. 7º.
Neste momento, o(a) leitor(a) pode estar se perguntando a respeito dos casos em que o legítimo interesse é utilizado para tratar dados com a finalidade de segurança e proteção. Esse é o caso, por exemplo, de um banco que, a partir de um circuito interno de câmeras, trata dados das pessoas que adentram no local - situação na qual é bastante difícil eleger outra base legal do art. 7º. Nessa circunstância, entretanto, seria possível se valer do § 3º do próprio art. 14. De acordo com este dispositivo, sempre que for necessário para proteger a criança, bem como para contatar seus pais ou responsáveis legais, o tratamento de dados poderá ocorrer independentemente de consentimento. Entende-se que isso pode ser estendido aos adolescentes, uma vez que a eles também se aplica o melhor interesse como direito fundamental.
Finalmente, após esse raciocínio, é de grande valia discutir uma outra possibilidade que tem sido aventada: por que não considerar os dados de crianças e adolescentes como dados sensíveis e aplicar a eles as bases legais estabelecidas no art. 11, da LGPD? De início, percebe-se uma grande vantagem nessa interpretação, uma vez que o rol de bases legais presentes no art. 11 tem grande paralelismo com as o art. 7º - retirando-se o legítimo interesse e a proteção ao crédito e adicionando-se o tratamento de dados para prevenção à fraude e à segurança do titular. Todavia, antes de se pensar apenas nas consequências de se reconhecer um dado como sensível, é preciso, antes, entender se todos os dados de crianças podem ser considerados como, de fato, sensíveis.
Preliminarmente, destaca-se que há uma discussão na doutrina brasileira sobre se o rol de dados sensíveis deve ser interpretado como taxativo. Sendo este o caso, isso poderia prejudicar uma eventual analogia em relação aos dados de crianças e adolescentes. Chama-se a atenção para o fato de que eventual abertura do conceito de dados sensíveis - que protege, com mais rigor, dados que potencialmente são utilizados com fins discriminatórios - poderia enfraquecê-lo. Nesse sentido, ao se permitir que a vulnerabilidade de crianças justifique o tratamento de seus dados como sensíveis, não seria o caso de estender esse entendimento também para dados de idosos e de pessoas com deficiência, por exemplo?
Outro ponto a se destacar é que uma interpretação adequada do melhor interesse teria o potencial de proteger dados de crianças de forma muito mais ampla do que considerá-los como sensíveis - isto é, como sendo mais passíveis de gerar discriminação. Apesar de o regime de dados sensíveis ser mais rigoroso, sua função e seu fundamento se prestam a finalidades diversas da proteção de dados crianças e adolescentes em geral. Assim, o tratamento de dados deve concretizar os direitos fundamentais dessas pessoas de forma primordial, o que demonstra que o melhor interesse transcende, em muito, a questão discriminatória.
Por fim, ainda no que tange ao último argumento, ao se enquadrar o tratamento de dados de crianças e adolescentes sob a égide exclusiva do art. 11, perder-se-ia a chance de se criar uma camada extra de proteção em relação aos dados sensíveis de crianças e adolescentes. Nesse sentido, com base no melhor interesse, parece evidente que dados referentes à religião, orientação sexual e biometria dessas pessoas, a título de exemplo, devem ser protegidos com ainda mais rigor que os mesmos dados referentes a adultos. Levando-se em consideração a vulnerabilidade de crianças e adolescentes, o tratamento discriminatório pode ter efeitos bem mais severos na vida dessas pessoas.
Por essa perspectiva, pode-se pensar no tratamento de dados a partir do reconhecimento facial, principalmente para finalidades de vigilância, que, além de ter o potencial de gerar discriminação, ainda pode violar diversos outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de associação. Assim, considera-se que o art. 11 e toda a construção teórica que o fundamenta, em conjunto com o art. 14, devem ser aplicados apenas quando se tratar de dados de crianças que se encaixem no rol de dados sensíveis. De qualquer maneira, uma pergunta interessante poderia surgir dessa discussão: seria possível defender a existência de uma categoria de dados hipersensíveis?
A partir dos desafios apresentados pelas três interpretações apontadas acima, é necessário e possível pensar em uma nova alternativa. Deste modo, levando em consideração os princípios estabelecidos na LGPD e em todo o ordenamento jurídico brasileiro, defende-se que, para tratar dados de crianças e adolescentes podem ser aplicadas as bases legais previstas nos incisos I a VIII do art. 7º, da LGPD (desde que estejam sempre orientadas pelo melhor interesse). Além disso, deve-se considerar a base legal estabelecida no art. 14, § 3º e, especificamente em relação ao consentimento, deve-se aplicar a regra do art. 14, § 1º. Por fim, quando se trata de dados sensíveis de crianças e adolescentes, a conjunção será do art. 14 com o art. 11, da mesma normativa. Em todas as situações, um relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais será essencial para avaliar como o melhor interesse será aplicado no caso.
Por ser contextual e histórica, a análise do melhor interesse demanda atenção constante por parte daqueles e daquelas que se preocupam com a sua efetivação. Dessa forma, longe de pretender colocar um ponto final nos debates que vêm sendo realizados, esse texto visa a instigá-los. Afinal, essas reflexões são essenciais para o amadurecimento do tema e para que a ANPD possa interpretar adequadamente a lei, de modo que os direitos de crianças e adolescentes sejam, de fato, concretizados.
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A elaboração deste texto não seria possível sem as discussões extremamente frutíferas feitas no DROIT - Núcleo de Direitos e Novas Tecnologias, da PUC/RJ. Agradeço, também, pelas contribuições essenciais de Maria Regina Cavalcanti Rigolon Korkmaz e Alan Rossi Silva.
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*Elora Raad Fernandes é doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestra em Direito e Inovação pela UFJF e graduada em Direito pela mesma instituição, com período de intercâmbio acadêmico na Universidad de Salamanca (Espanha).