A banalização da privacidade no sistema criminal
A criação deste banco de dados no sistema criminal pela lei 14.069/20 gera diversos alertas sobre o respeito a legislação vigente brasileira e a dignidade humana no Estado Democrático de Direito.
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
Atualizado em 27 de outubro de 2020 08:06
No último dia 02, a sanção presidencial converteu o projeto de lei 5.618/16 na lei 14.069/20 que prevê a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Estupro. Além deste banco de dados, desde 2019 está em funcionamento a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) que busca integrar os dados acerca do perfil genético de suspeitos e condenados nos estados brasileiros, com a finalidade de solucionar crimes. Ocorre que, esse crescente impulso de armazenamento de dados pela política criminal, nos remete aos dados sensíveis e ao exacerbado uso da vigilância e do poder de polícia do Estado em face de pessoas que em teoria ameaçam a segurança e ordem pública.
A sanção da lei 14.069/20 acarreta riscos a garantias constitucionais, as próprias políticas criminais e a legislação de proteção de dados, desestabilizando o Estado Democrático de Direito.
É impossível olhar a execução de leis que têm por objetivo arrecadar dados pessoais e dados sensíveis e não pensar na Lei Geral de Proteção de Dados que não restringe a aplicabilidade ao setor privado: o Estado além de garantir o cumprimento da legislação, deve exigir a fiel observância por suas entidades, o que resulta incongruente com este movimento legislativo e posterior sanção presidencial de um texto que afronta os princípios constitucionais, da LGPD e da processualística criminal brasileira.
As diretrizes apontadas no texto sancionado carecem de detalhamento sobre pontos cruciais de modo a possibilitar que a lei seja cumprida. Tais lacunas geram dúvidas quanto a compatibilidade da lei com as demais normas do ordenamento, como, por exemplo, o tempo de tratamento destes dados pelo Estado.
A duração da possibilidade de uso de tal dado coloca em questionamento o sentido do art. 5º, XLVII, alínea b sobre a inexistência de penas de caráter perpétuo, visto que, a utilização destes dados para até depois da reabilitação e ressocialização dos indivíduos poderá ocasionar outros tipos de penas como represálias de diversos setores da sociedade e discriminação, que também é um fator preocupante para a Lei Geral de Proteção de Dados que determina as instruções normativas para o tratamento de dados pessoais e dados sensíveis, que, estão são objeto principal nesta nova lei, a qual também carece de previsão quanto o acesso a estes dados e a segurança e sigilo dos mesmos.
A tendência é que dados passem a ser cada vez mais valorizados, o que torna ainda mais relevante a obediência às regras sobre o tratamento destes dados a fim de que indivíduos possam estar protegidos dos arbítrios estatais. Uma das função do Estado Democrático de Direito é conter os abusos do poder de polícia, pois a melhor maneira de preservar a nossa autonomia é por meio de uma política de privacidade consciente. A instituição por parte do Estado de uma "classe suspeita" pode ser repleta de viés político e ideológico para os que possuem maior vulnerabilidade, pois estão expostos a um número maior de efeitos do sistema de exclusão.
As justificativas dos Deputados e Senadores que apoiaram a aprovação do texto referenciam a impunidade, a diminuição da reincidência do delito e a prevenção da transgressão penal, contudo à medida que foi adotada não ponderou a possibilidade de na prática a adoção deste banco de dados seja seletiva e segregacionista, podendo também servir para tornar o condenado refém da condenação e perder as garantias sobre a sua intimidade, na medida que a decisão da entrada ou não do dado genético no banco de dados não pertence à ela, e consequentemente tem-se a perda da autonomia sobre a própria informação genética.
A democracia só pode ser ratificada se os direitos e garantias dos indivíduos forem preservados, e para isso é necessário que as decisões dos poderes estatais sejam harmônicas ao instituir novas legislações. Isto porque, a atualidade apresenta dois pólos em direções distintas: a LGPD, que prevê a possibilidade de coleta de dados ao necessário, com transparência e legitimando as pessoas como donas de suas informações, e no extremo oposto, as políticas criminais que são orientada pela intensificação da vigilância e do controle. É imprescindível a solução destas divergências para que, na sua medida, não gerem perdas irreparáveis ao Estado Democrático de Direito brasileiro.
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BRASIL. Lei Nº 14.069, de 1º de outubro de 2020. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 02 out. 2020. Seção 1, p. 3.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível clicando aqui. Acesso em: 08 out. 2020.
DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. In Espaço Jurídico, v.12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011, disponível clicando aqui
FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 88, pp. 439-459, 1993, disponível clicando aqui
LYNSKEY, Orla. Criminal Justice profiling and EU data protection law: precarious protection from predictive policing. International Journal of Law in Context, 15 ed., 162-176, 2019, disponível clicando aqui
ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. 3º. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019. p. 21.
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*Amanda Aciari é pesquisadora no Instituto Liberdade Digital e no Innocence Project Brasil, graduanda em Direito pelo Mackenzie.
*Beatriz Moraes é advogada, pesquisadora no Instituto Liberdade Digital, Pós graduanda em Direito Digital pelo Mackenzie e Direito Internacional pela EBRADI.
*Rafael Camargo é graduando em Direito pela FMU, Formado em Publicidade e Propaganda no Mackenzie, Extensão em NeuroCiência Aplicada ao Consumo (NeuroMarketing) na ESPM.