Acordo Substitutivo nas multas ambientais federais em Brumadinho
As multas ambientais, em sua expressão final de crédito não-tributário, assumem diretriz finalística firmada e condizente com a expectativa social de eficiência.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Atualizado às 12:41
Os limites e a execução dos papéis institucionais dos Poderes e das funções públicas em um Estado Democrático são um desafio constante. Se no passado era mais palpável traçar linhas divisórias, e quase planas, o contexto de uma sociedade de risco e plural em suas demandas implica flutuações que determinam a separação de poderes e funções de forma articulada e por vezes acidentada em seu relevo. É nesse contexto articulado e de flutuações que se situa o papel da Advocacia-Geral da União. Em sua função concretizadora normativa e de resguardo aos papéis constitucionais do Poder Público, a AGU, como instituição e carreira de Estado, apresenta-se na missão jurídica de viabilizar no marco legal e constitucional políticas públicas, seja em esfera administrativa, seja em esfera judicial.
A Advocacia Pública se diferencia da Advocacia Privada justamente por seu papel constitucional e legal de construção e tutela normativa tanto do Estado quanto das políticas públicas, protegendo a legitimidade de gestores, de Governantes eleitos, de Deputados e Senadores no exercício das atribuições do Poder Executivo e do Poder Legislativo. A Advocacia Pública é simultaneamente controle de legalidade e afirmação de vias para a vida jurídica de políticas públicas formuladas pelos agentes políticos. Nessa linha, a AGU figura com peso argumentativo no equilíbrio entre os Poderes, e simultaneamente na proteção do interesse público. O desastre de Brumadinho manifestou de forma ímpar este papel institucional.
O desastre socioambiental e socioeconômico acarretou três tipos de responsabilidade àqueles que lhe deram causa. A responsabilidade penal, sob atribuição de condução pelo Ministério Público, é relacionada aos tipos criminais. A responsabilidade civil ambiental, voltada para a reparação dos danos, é conduzida em concorrência pela Advocacia Pública, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público. Por fim, tem-se a responsabilidade administrativa, relativa às penalidades aplicadas pelos órgãos ambientais, onde se destacam as multas ambientais. Aqui figura o direito sancionador. A multa ambiental resulta em um crédito não tributário, não se confunde com a reparação do dano, sua função é em si punitiva e ligada ao interesse da Administração.
O desastre acarretou a aplicação de multas ambientais federais, pelo IBAMA, e estaduais, pelo Estado de Minas Gerais. A discussão, por parte da responsável pelo dano, foi justamente se haveria, e em que limite, uma situação de bis in idem, ou seja, de dupla punição. Há posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários que poderiam levar à frustração da atuação punitiva. O cenário traçava um itinerário de discussões judiciais diante da traumática catástrofe ecológica e humana. A proteção da função normativa da responsabilidade ambiental administrativa assim como fatores contenciosos demandaram a instrumentalização de institutos jurídicos que proporcionem a superação da instabilidade. As demandas sociais e exigências de eficiência, sempre dentro do parâmetro legal, demandam uma Administração Pública proativa e eficaz para com seu papel normativo.
No desastre de Brumadinho, o IBAMA aplicou cinco multas ambientais, em valor total de R$ 250.000.000,00 (duzentos e cinquenta milhões de reais). A fim de guarnecer a dimensão punitiva e segurança jurídica, foi aplicado no caso o instituto do Acordo Substitutivo, previsto no artigo 26 da Lindb, introduzido pela lei 13.655/18. A elaboração do Acordo, a partir da Advocacia-Geral da União, em integração com o IBAMA e o Ministério do Meio Ambiente, alcançou a satisfação dos valores, sendo devidamente homologado pela Justiça Federal. Mas o traço marcante foi o resguardo para que os gestores públicos possam implementar ganhos ambientais a partir do próprio Acordo.
O fator de distinção e que faz em si o caráter substitutivo do Acordo é a fixação de aplicação do valor das multas em prol de projetos ambientais. A partir de avaliações técnicas e de gestão dos órgãos ambientais, foi fixada a aplicação de 60% dos valores com destinação a Parques Nacionais, como o da Canastra, Caparaó, Gandarela e Grande Sertão Veredas, e a aplicação dos outros 40% em projetos admitidos pela Secretaria da Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente. Os projetos são direcionados para beneficiar municípios de Minas Gerais e estão relacionados a saneamento básico, resíduos sólidos e áreas verdes urbanas. A destinação é autônoma, independente da reparação dos danos decorrentes do desastre, que tramitam em seara jurídica própria. Ou seja, o Acordo substitutivo de forma alguma mitiga ou reduz as obrigações de reparação do dano ambiental, sua concretização expressa um ganho finalístico na atuação sancionadora.
A viabilização da eficácia normativa e resguardo do papel das políticas públicas se dá justamente por fundar a atuação judicial na concretização do Direito e no controle jurisdicional de aplicação dos valores, mas simultaneamente resguardando que a gestão e aplicação dos recursos são matérias de atribuição dos órgãos ambientais e dos gestores públicos. O diálogo institucional na implementação do Acordo Substitutivo é emblemático na aplicação das normas jurídicas em favor da viabilização de políticas públicas construídas e implementadas pelos atores institucionais próprios e legítimos. As multas ambientais, em sua expressão final de crédito não-tributário, assumem diretriz finalística firmada e condizente com a expectativa social de eficiência.
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*Marcelo Kokke é pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela - ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Especialista em Ecologia e Monitoramento Ambiental Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Professor da Faculdade Dom Helder Câmara, Uni-BH e IEC-PUC Minas.