Papel do Estado na regulação de setores da economia: Prevalência do interesse público sobre o interesse estatal
O Estado exerce o papel de imprimir em alguns setores a supremacia valorativa do interesse público e das políticas definidas na Constituição Federal.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Atualizado em 22 de outubro de 2020 08:01
O Direito Empresarial não pode ser mero expectador dos acontecimentos de mercado, agindo somente quando é invocado para resolver conflitos, deve, junto com a economia, transformar dados relevantes em valores, para influenciar o próprio conhecimento da vida econômica, o que somente é possível mediante "profunda compreensão tanto da dimensão individual quando da dimensão coletiva do conhecimento humano"1.
Assim, o Estado exerce o papel de imprimir em alguns setores a supremacia valorativa do interesse público e das políticas definidas na Constituição Federal.
E, neste sentido, atua como garantidor da ordem pública, regulando o mercado privado, diante da ausência de capacidade de autorregulação. Isto ocorre no setor público e no privado, especialmente porque o maior problema não seria a ausência de recursos, mas sim a falta de conhecimento capaz de possibilitar uma melhor gestão dos recursos existentes.
Neste sentido, após a experiência Microsoft, economistas da Universidade de Stanford pretenderam demonstrar através da teoria dos jogos que o mercado não funciona de forma eficiente se deixado livre, mas defendem que a intervenção pela intervenção não consegue alcançar os resultados esperados2.
No Brasil, o Estado exerce duas funções opostas e igualmente importantes, quais sejam, a ingerência direta na vida econômica e a mera fiscalização dos particulares, atuando na vigilância do mercado através da intervenção pela concessão de serviço público ou pelo exercício do poder de polícia nos setores privados, seja editando normas legais e infralegais, seja através da fiscalização direta das empresas.
Mas a crítica doutrinária é no sentido de que a teoria da regulação até então não é aplicada de forma eficaz. Se assim o fosse, poderia representar uma contribuição mais útil do Estado, como organizador das relações sociais e econômicas que pretende ser3. Até porque prevalece uma forma passiva de atuação, em que o Estado faz a concessão do serviço e fiscaliza a atividade ou simplesmente exerce o poder de polícia apenas limitando a liberdade dos particulares através de normativos que, muitas vezes, não acompanham a complexidade e desenvolvimento das atividades econômicas.
Esclarece Calixto Salomão Filho que, no campo econômico, a utilização do conceito de regulação possui duas vertentes, "em primeiro lugar a redução da intervenção direta do Estado na economia, e em segundo, o crescimento do movimento de concentração econômica"4. Esses conceitos recebem maior importância na medida em que setores não regulados passam a sofrer essa atuação estatal, especialmente em matérias antitruste, que não se limita a sancionar ilícitos, mas também passa a impor determinados comportamentos aos atores de mercado, visando garantir a sua higidez, segurança e até imperativos de redistribuição de renda.
De acordo com Eros Grau, a Constituição Federal adotou a uma ordem econômica intervencionista, que limita o Direito de livre iniciativa constante do artigo 170, visando a existência digna de todos dentro de uma ordem justa5.
No entanto, as bases teóricas expostas são incompletas, devendo ser admitida a convivência dos aspectos econômicos e sociais da regulação, reconhecendo-se que é possível a prevalência de um sistema sobre o outro, a depender da natureza do setor regulado. Na medida em que alguns setores que exercem maior influência na ordem econômica sejam mais e outros setores tenham menor interferência estatal.
Excluindo-se os setores em que necessariamente deverá ocorrer a fiscalização estatal, restam os setores articulados e criados de forma individual, cuja regulamentação deve encontrar previsão legal, especialmente em caso de intervenção direta.
O objetivo neste caso é encontrar uma forma predeterminada e jurídica de garantir a efetiva correção e da legalidade da integração dos vários agentes econômicos no mercado e de sua igualdade material em termos concorrenciais, não se aplicando somente às relações entre concorrentes, mas também para equilíbrio jurídico das forças entre oferta e demanda6. Ou seja, na relação entre consumidores e fornecedores também.
Diante disto, há a premente necessidade de compatibilizar a atuação estatal com os valores históricos, sociais e constitucionais, fundamentados na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e na livre iniciativa, para promoção de uma ordem econômica baseada na justiça social, que observa na sua execução os princípios da função social da propriedade, da livre concorrência e da defesa do consumidor.
A regulação neste caso tem papel norteador do mercado e abertura de concorrência, quando esta não ocorre naturalmente pela aplicação das normas concorrenciais e antitruste. Busca-se que o interesse comum prevaleça sobre o interesse individual, notadamente das empresas atuantes em determinado segmento de mercado, para um melhor equilíbrio das relações.
Luis Roberto Barroso diz que a intervenção estatal deve se ater fundamentos determinantes, como a reorganização da própria livre iniciativa e da livre concorrência, nas hipóteses excepcionais em que o mercado privado haja de forma desorganizada; a valorização do trabalho humano; e os princípios de funcionamento da ordem econômica7.
A regulação através de intervenção estatal ocorre com alicerce em duas teorias, o Interesse Público e a Economia da Regulação.
A teria do Interesse Público tem por objetivo buscar o bem público, definido de diversas formas. Essa teoria possui duas críticas, quais sejam, esse regime possibilita o monopólio originado da captura do poder concedente pelo concessionário; e a cada forma de controle encontra-se formas de contorná-lo, como no caso de controle de preço quando se altera a qualidade, a continuidade, o atendimento ao usuário etc8.
A teoria Neoclássica ou Econômica da Regulação baseia-se em dois fundamentos, quais sejam, "a negação de qualquer fundamento de interesse público na regulação e a afirmação do objetivo de substituição ou correção do mercado através da regulação". A partir desses fundamentos defende a desregulamentação ou desregulação do mercado, devendo ocorrer a regulação somente em setores específicos que caracterizam verdadeiros monopólios naturais e em que estejam presentes a concorrência excessiva ou predatória9.
Seria a autorregulação como uma "mão invisível" no mercado, capaz de promover os valores necessários à sua fluidez com um ambiente de "concorrência perfeita", como ocorre em alguns mercados, através da criação de bolsas de negócios e bolsas de valores. Mas essa concepção sofre críticas de haver falhas evidentes, como a impossibilidade de reprodução de condições de mercado em plano meramente teórico, seja através da regulação ou da autorregulação10.
Como se vê, o interesse público deve prevalecer sobre os demais preceitos e fundamentos para a intervenção estatal sobre os setores e não o interesse do próprio Estado em prover receitas para planos de governo, que devem ser previamente planejados e orçados para serem executados. A despeito da necessidade do Estado em promover a gestão e a organização dos órgãos estatais, a Constituição Federal preconiza princípios norteadores das ações do Estado, como a justiça social e a redução das desigualdades, o que pode ser realizado por meio de manutenção de Direitos já conquistados pelos cidadãos.
Destarte, entendemos que o Estado deve atuar para garantir uma ordem econômica justa, primando pelo interesse público, não com uma intervenção desmedida, o que pode impedir o desenvolvimento social e econômico. Sua atuação deve ter em vista assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, o que é por si só uma atuação ampla e justifica diversos atos de governo sobre a atividade privada.
1 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 5ªa ed. São Paulo: Saraiva, 2019. P. 20.
2 Op. Cit. Item 1. P. 22.
3 SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria crítico-estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, P. 204.
4 Op. Cit. Item 3. P. 205.
5 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 16a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 305.
6 Op. Cit. Item 3. P. 218.
7 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226: 187-212, out./dez. 2001. P. 204-205.
8 Op. Cit. Item 3. P. 209-210.
9 Op. Cit. Item 3. P. 210-212.
10 Op. Cit. Item 3. P. 212-214.
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*Allinne Rizzie Coelho Oliveira Garcia é sócia do escritório Jacó Coelho Advogados, Conselheira Seccional da OAB/GO e presidente da Comissão Especial de Direito Securitário da OAB/GO.