É a vida
A vida é de um jeito que a gente sabe, mas que não está assim: ela é combate que, como disse o poeta, só aos fracos abate e aos fortes e bravos exalta.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Atualizado às 08:18
Passamos um tempo diferente que exige criatividade para sobreviver em todas as vertentes.
Temos a necessidade de distanciamento social e, por isso, aceitamos registrar as datas com passagens virtuais, cantos desarmônicos, que chegam a tratar-se como comemorações; consentimos tentar trabalhar de casa, sob o nome pomposo de home-office; concordamos ver a Justiça de longe, em julgamentos e audiências virtuais; aprovamos consultas médicas online, que se fiam apenas na descrição do doente; vemos jogos de futebol com torcidas fabricadas por DJs, que embalam somente o time da casa com indiferente descompasso; nos conformamos com jornais escritos de longe, distantes dos locais em que o fato acontece; acolhemos aulas, sem que o professor possa inspirar-se na reação do olhar do aluno. Tudo isso é anomalia, sem dúvida alguma, que somente se justifica e se aceita para não reconhecer que o mundo, atualmente, ficou apenas para os fantasmas.
Não tem sentido comemoração sem o abraço apertado, o beijo molhado, a camisa marcada pelo molho vermelho e o bater dos copos. A casa é o regaço da intimidade, onde se permite apenas aos que nela habitam ficar descalço, enlaçar a mulher ou inventar penteados e pinturas para as crianças. A Justiça só existe olho no olho, cara a cara com o juiz, com o ritual que impõe respeito e com juízes com quem se pode falar. A consulta médica é para o médico apalpar o doente, sentir seu calor, observar sua cor, os seus trejeitos e medos. O futebol é para ser jogado com o calor da torcida, com a reação adversa dos próprios aficionados do time da casa e com a reação espontânea nos lances duvidosos. Os jornais que justificam a leitura têm que ser criados onde a notícia está. A aula é para ter reação no rosto do aluno e ser instantânea diante do dito infeliz ou pouco claro. Aceitam-se, entretanto, essas coisas e o momento atual, por não ser possível se fazer melhor.
Este tempo, porém, não serve para nortear o futuro e o que nele se está fazendo é por reles instinto de possível subsistência. Controlada a pandemia, vamos ter esperança e nos propor a comemorar com abraços e beijos; vamos voltar aos escritórios com ternos surrados ou novos, gravatas com laços perfeitos ou não e o indefectível modelito preto, mas onde se tem a sensação de não estar misturando o afeto gostoso que só o lar dá com a aspereza necessária e nervosa para se ganhar o pão. Vamos para o fórum e o tribunal, onde o juiz também deve estar e a testemunha terá medo de mentir, pois a crava da Justiça lhe estará muito próxima. Vamos ao médico com a certeza de que nossa saúde será mesmo avaliada. Vamos voltar aos estádios para, torcendo, reclamar também da burrice do nosso técnico, do jogo retranqueiro e sem criatividade e vaiar o adversário, no saudável confronto de torcidas, que, aliás, um infeliz idiota de plantão antes quis impedir, criando jogo de torcida única. Vamos saber em casa como foi a aula de nossos filhos e perceber o entusiasmo deles com a troca de aprendizado. Tudo voltará a ser normal, normal mesmo.
Interesses econômicos mesquinhos e preguiças mentais não podem nortear nossa vida, transformando tudo em virtual, artificial. A vida é de um jeito que a gente sabe, mas que não está assim: ela é combate que, como disse o poeta, só aos fracos abate e aos fortes e bravos exalta. Você já ouviu falar da vida e dela não vai querer pular, pois antes já não pulou; por isso vai saber levantar-se da poeira e entrar novamente no seu turbilhão, pois o homem não será outro, com toda certeza, de modo que não nos trará mais do que já tivemos.
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*Clito Fornaciari Júnior é graduado em Direito pela Faculdade de Direito da PUC. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogado e sócio do escritório Clito Fornaciari Júnior - Advocacia.