O presidente da república pode bloquear pessoas em suas redes sociais?
Em 2017, Donald J. Trump bloqueou, por meio de seu perfil no Twitter, o acesso de contas de pessoas que haviam feito comentários críticos em suas postagens.
sexta-feira, 16 de outubro de 2020
Atualizado às 08:09
O presidente da república pode bloquear pessoas em suas redes sociais? Uma abordagem comparada do direito à informação e da liberdade de expressão
Não faltam exemplos no noticiário cotidiano que confirmem a tumultuosa relação do presidente dos EUA com as mídias sociais. Em 2017, Donald J. Trump bloqueou, por meio de seu perfil no Twitter, o acesso de contas de pessoas que haviam feito comentários críticos em suas postagens. Este ano, a discussão foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos (18-1691-cv) e a controvérsia é de se seria a atitude do presidente uma violação à Primeira Emenda (1791) da Constituição americana (1787). Aguarda-se julgamento, no qual a Corte pode confirmar ou não a decisão proferida pelo Tribunal de Apelação (United States Court of Appeals for the Second Circuit), que entendeu que Trump não pode privar usuários de ter acesso à sua conta.
No Brasil, destaca-se uma prática similar. O Mandado de Segurança 36.648 impetrado no Supremo Tribunal Federal, em 2019, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, discute a restrição de acesso de uma deputada federal, também em razão de um comentário na mesma rede social, ao perfil do presidente Jair M. Bolsonaro.
Esses fatos movimentam questões especiais em torno do direito à informação e à liberdade de expressão. Mais: notabilizam a relação de tais direitos entre si e a democracia. Indicam, ainda, que o direito à informação não coincide com a imprensa: é mais abrangente que ela.
Ronald Dworkin afirma que a posição extraordinária dos EUA na defesa da liberdade de expressão e de imprensa frente a outras democracias dá-se em razão da decisão proferida em 1964 no New York Times Co v. Sullivan (376 U.S. 254), famoso caso que envolveu a imprensa e a tutela da honra de um oficial público. Sobretudo, a decisão impôs um ônus probatório ao oficial, que em outras situações de ofensa à honra de civis não caberia provar, a denominada "actual malice".
Além disso, o autor registra que se o caso não fosse decidido tal como foi, é de duvidar-se que outros acontecimentos posteriores de importância nacional - tal como a investigação de Watergate, em 1974 - tivessem tido a resolução de dar especial proeminência à liberdade de imprensa.
Owen Fiss, ao comentar sobre o julgamento de 1964, apontou que, do ponto de vista da Corte, pessoas públicas assumem, necessariamente, certos riscos ao adentrar na esfera política.
Não é por outro motivo que a OEA, em suas relatorias de liberdade de expressão, ressalta que a crítica a essas pessoas faz com que a honra ofendida ceda espaço a algo que é mais importante para a sociedade, a informação. Bem por isso estão sob um maior escrutínio público.
Como Fiss sugere, o que a democracia exalta não é somente o fato de as pessoas poderem fazer escolhas públicas, mas que essas escolhas sejam deliberadas em um ambiente de informação completa, de um debate robusto e firme. Essa característica especial do debate significa garantir que as pessoas ouçam tudo o que deveriam.
A liberdade de expressão - mais que um instrumento - constitui a própria democracia, como defende Dworkin. Proteger tal direito justifica-se pelo interesse da sociedade em viver em um ambiente de livre circulação de ideias.
Os perfis nas redes sociais de representantes políticos - ainda mais, eleitos - configuram um meio de acessar informações oficiais sobre o andamento das políticas e escolhas do governo. Privar pessoas de ter conhecimento delas por proferirem manifestações em discordância, mesmo que desagradavelmente afiadas - para usar a expressão de 1964 "unpleasantly sharp" - é impor bloqueios à própria democracia.
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*Daniela Urtado é pesquisadora do Setor de Pesquisa do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.