Estado do Espírito Santo promove incorretas autuações na devolução de mercadorias
Autuações ocorrem quando o fornecedor do contribuinte capixaba registra a nota fiscal de saída da mercadoria em suas escriturações fiscais, mas demora a registrar (ou até mesmo não registra) o retorno da mercadoria devolvida.
terça-feira, 6 de outubro de 2020
Atualizado às 14:57
Tomamos conhecimento que o Estado do Espírito Santo vem autuando diversos contribuintes sob a alegação de presunção legal de omissão de receita em relação a mercadorias que o contribuinte capixaba devolve ao seu fornecedor por qualquer motivo. Segundo informações, normalmente essas autuações decorrem da seguinte situação: o fornecedor do contribuinte capixaba registra a nota fiscal de saída da mercadoria em suas escriturações fiscais, mas, por algum motivo, demora a registrar (ou até mesmo não registra) o retorno da mercadoria devolvida. Destaque-se que nessa hipótese, o contribuinte que devolveu a mercadoria não é obrigado a promover qualquer registro na sua escrituração fiscal.
Aparentemente, o fisco, ao promover o cruzamento de dados entre os contribuintes, ao se deparar com o registro de uma nota fiscal de saída no estabelecimento do fornecedor, sem a correspondente entrada no estabelecimento do destinatário, presume que o destinatário recebeu a mercadoria sem registrar sua entrada e a vendeu (daí a presunção de omissão de receita). Ocorre que, segundo os casos que tomamos conhecimento, o fisco não se preocupa em intimar o contribuinte que devolveu as mercadorias para esclarecer o motivo da ausência de registro da entrada em seu estabelecimento, e promove automaticamente a lavratura de auto de infração. A autuação exige do contribuinte o pagamento do imposto (ICMS), além de multa por descumprimento de obrigação acessória.
E, para piorar, nesses casos o fisco estadual alega que o contribuinte capixaba tem obrigação de anotar à mão, no verso da nota fiscal, o motivo da devolução da mercadoria, sendo que apresentação dessa anotação em sede de processo administrativo é a única forma de comprovar a devolução da mercadoria. Acaso não se apresente essa documentação, o fisco entende que resta comprovada a presunção legal de saída de mercadoria sem a escrituração fiscal. Como exemplo, veja-se o seguinte precedente do Conselho Estadual de Recursos Fiscais do Espírito Santo (CERF/ES):
ACÓRDÃO N.º 0314/2017 DA SEGUNDA CÂMARA DE JULGAMENTO - SESSÃO DE 14 DE SETEMBRO DE 2017 - EMENTA: "FALTA DE EMISSÃO DE DOCUMENTO FISCAL NA SAÍDA DE MERCADORIAS - PRESUNÇÃO LEGAL DE OMISSÃO DE RECEITA - FALTA DE REGISTRO DE NOTAS FISCAIS NO LIVRO REGISTRO DE ENTRADA - TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIAS COM DESTAQUE DO IMPOSTO NAS NOTAS FISCAIS - ALEGAÇÃO DE DEVOLUÇÃO DAS MERCADORIAS NÃO COMPROVADA - ILICITUDE CARACTERIZADA - AÇÃO FISCAL PROCEDENTE - RECURSO VOLUNTÁRIO IMPROVIDO -DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA MANTIDA. Nos casos de devolução ou retorno, a prova do não recebimento de mercadoria deverá ficar evidenciada por meio de anotação no verso da primeira via da nota fiscal, efetuada pelo destinatário ou pelo transportador, do motivo pelo qual não foi entregue a mercadoria, o que não foi apresentado pelo sujeito passivo, logo não restou provado nos autos o desfazimento do negócio com a pretensa devolução da mercadoria ao fornecedor conforme estabelece a legislação. (...) No mérito, ficou comprovado que a falta de registro de notas fiscais de entrada na escrita fiscal, de mercadorias adquiridas a qualquer título, constitui infração à legislação tributária estadual, e caracteriza, por presunção legal, omissão de receita, evidenciada pela saída de mercadorias desacobertadas de documentação fiscal, razão pela qual procede a ação fiscal."
Ao nosso entender, neste tipo de caso, o fisco capixaba se aproveita de uma brecha na legislação estadual e estabelece uma verdadeira arapuca contra o contribuinte que devolveu a mercadoria que, em rigor, repita-se, sequer é obrigado a registrar a entrada das mercadorias devolvidas.
Da atenta análise do RICMS/ES, verifica-se que a responsabilidade pela apresentação de informações ao fisco no caso de devolução de mercadorias é exclusiva do emitente-vendedor (fornecedor) da mercadoria, senão vejamos:
RICMS/ES
"Art. 412. O estabelecimento que receber, em retorno, mercadoria por qualquer motivo não entregue ao destinatário, para creditar-se do imposto debitado por ocasião da saída, deverá:
I - emitir nota fiscal de entrada, com menção dos dados identificadores do documento fiscal original, lançando-a no livro Registro de Entradas de Mercadorias e consignando os respectivos valores nas colunas "ICMS - Valores Fiscais - Operações com Crédito do Imposto";
II - manter arquivada a primeira via da nota fiscal emitida por ocasião da saída, que deverá conter a anotação prevista no parágrafo único;
III - anotar a ocorrência na via presa ao bloco ou em documento equivalente; e
IV - exibir ao Fisco, quando exigidos, todos os elementos, inclusive contábeis, comprobatórios de que a importância eventualmente debitada ao destinatário não foi recebida.
Parágrafo único. O transporte da mercadoria em retorno será acompanhado pela própria nota fiscal emitida pelo remetente, cuja primeira via deverá conter, no verso, anotação, efetuada pelo destinatário ou pelo transportador, do motivo pelo qual não foi entregue a mercadoria."
Nota-se que a legislação elegeu como destinatário das obrigações acessórias "o estabelecimento que receber, em retorno, mercadoria por qualquer motivo não entregue ao destinatário". Ou seja, é o estabelecimento que recebe a mercadoria em retorno que deve (I) emitir a nota fiscal de entrada ao receber novamente a mercadoria; (II) manter arquivada a via da nota fiscal em que houve a recusa da mercadoria, (III) anotar a ocorrência, e (IV) exibir ao fisco os documentos comprobatórios das ocorrências de devolução. Em outras palavras: não é obrigação do contribuinte que devolveu a mercadoria: (I) emitir a nota fiscal de entrada ao receber a mercadoria que será devolvida, (II) manter arquivada a via da nota fiscal em que houve a recusa da mercadoria, e (III) anotar a ocorrência e exibir ao fisco os documentos comprobatórios das ocorrências de devolução.
Desta forma, ao nosso entender, não pode a fiscalização exigir do contribuinte que devolveu as mercadorias o cumprimento de tais obrigações acessórias, em respeito ao princípio da legalidade, que, ademais, incumbe de tais obrigações terceira pessoa. Acaso fosse obrigação do contribuinte que devolveu a mercadoria emitir nota fiscal de entrada para depois registrar a sua saída (nada impede que o RICMS/ES estabelecesse tal dinâmica), ainda poderia se falar em acerto do entendimento do fisco; mas não é o que acontece.
Ora, a forma como o RICMS/ES trata a devolução das mercadorias tem lógica procedimental e mercadológica, o que está sendo subvertido pela fiscalização neste tipo de autuação. A lógica procedimental reside no fato de que quem devolve a mercadoria não toma créditos com relação a ela, não fazendo sentido haver qualquer escrituração neste sentido. Já a lógica mercadológica consiste no fato do ordenamento jurídico, como um todo, beneficia quem devolve a mercadoria em detrimento do fornecedor que remete mercadoria imprópria para o consumo/comércio, conforme disposições e princípios gerais do direito civil e do direito do consumidor, que por ora não serão esmiuçados para não se fugir do tema central do presente auto.
É de se constar também que ainda que o emitente-fornecedor não cumpra a obrigação dos artigos 111 e 412 do RICMS/ES, ao nosso ver, ainda assim o contribuinte que devolveu a mercadoria não pode ser responsabilizado, pois o Código Tributário Nacional, em seu artigo 122, define que o sujeito passivo da obrigação acessória é quem deve prestá-la, e nos termos do artigo 124, do CTN, a solidariedade só se constitui quando se trata de obrigação principal, e quando há ocorrência de fato gerador.1
Pode-se confirmar o que é afirmado até aqui pode ser confirmado por meio de precedente que julgou caso semelhante no Estado de São Paulo, no qual se denota que o fisco paulista promoveu ação fiscal em face do fornecedor-remetente que teve a mercadoria devolvida:
"APELAÇÃO. Ação anulatória de débito fiscal AIIM referente a creditamento de ICMS reputado indevido pelo Fisco. Diversas notas fiscais de entrada de mercadorias, por retorno, em largo período de apuração (jan/2001 a dez/2002) em desacordo com o art. 453, parágrafo único, do RICMS (falta de indicação nas notas fiscais de saída do motivo da não recepção ou da devolução das mercadorias). Saídas das mercadorias incontroversas. Retorno delas ao estabelecimento do contribuinte controverso. (...) Ônus probatório da empresa autuada quanto à comprovação do real retorno das mercadorias. (...) APELAÇÃO DESPROVIDA."2
Outro problema com o entendimento adotado pelo fisco capixaba neste tipo de autuação diz respeito à produção de prova.
Segundo o precedente do CERF/ES ementado no início do presente artigo, a apresentação do verso da nota fiscal contendo a assinatura do contribuinte que devolveu a mercadoria com os motivos para a devolução seria o único meio de prova para afastar a presunção de omissão de saídas. Ao nosso ver, tal entendimento também não pode prosperar.
Primeiro, porque provar que uma mercadoria nunca entrou em seu estabelecimento exige do contribuinte a confecção de prova negativa, diabólica ou impossível, que à rigor, sequer deveria lhe ser atribuída. Na verdade, no nosso entender, é da fiscalização o ônus de demonstrar que as mercadorias de fato entraram no estabelecimento do contribuinte - e não apenas se basear em dados obtidos em cruzamentos fiscais.
Segundo, porque em nome do princípio da ampla defesa e da verdade real, o contribuinte pode apresentar qualquer prova lícita que se presta para a comprovação das suas alegações. Nesse sentido, veja-se pronunciamento do STJ:
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ESCRITURAÇÃO IRREGULAR. SALDO CREDOR EM CAIXA. PRESUNÇÃO DE OMISSÃO DE RECEITA.
FACULDADE DO CONTRIBUINTE PRODUZIR PROVA CONTRÁRIA. PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL. SUCUMBÊNCIA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE.
1. A presunção juris tantum de omissão de receita pode ser infirmada em Juízo por força de norma específica, mercê do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5.º, XXXV, da CF/1988) coadjuvado pela máxima utile per inutilenomvitiatur.
2. O princípio da verdade real se sobrepõe à presuntio legis, nos termos do § 2º, do art. 12 do DL 1.598/77 (art. 281 RIR/99 - Decreto 3.000/99), ao estabelecer ao contribuinte a faculdade de demonstrar, inclusive em processo judicial, a improcedência da presunção de omissão de receita, considerada no auto de infração lavrado em face da irregularidade dos registros contábeis, indicando a existência de saldo credor em caixa. Aplicação do princípio da verdade material.
(...)"3
Portanto, no nosso entender, o entendimento do fisco no sentido de que é do contribuinte que devolveu a mercadoria a responsabilidade de comprovar sua devolução, bem como de que só existe um meio de prova para se comprovar a devolução é totalmente descabido.
Ademais, superadas as questões da análise do RICMS/ES, e do entendimento acerca das provas que o contribuinte pode utilizar, verificando-se a questão por outro prisma, também se vislumbra desacerto na conduta do fisco capixaba porque na hipótese da devolução de mercadorias não ocorre o fato gerador do ICMS. Como é cediço, o fato gerador do ICMS é a circulação jurídica da mercadoria. Sem que tenha havido a entrada jurídica das mercadorias no estabelecimento do contribuinte diante da devolução aos seus fornecedores, não houve qualquer fato gerador do tributo ou ato que ensejasse cobrança do ICMS.
Também não pode se falar ocorrência presumida do fato gerador do ICMS na suposta saída das mercadorias do estabelecimento do contribuinte pois estas sequer foram adquiridas. Ainda que o contribuinte fosse obrigado a recolher o ICMS antecipadamente, o tributo não seria devido pois o seu fato gerador seria a entrada jurídica da mercadoria no seu estabelecimento, o que, repita-se, não ocorre na hipótese ante a devolução das mercadorias aos fornecedores.
As assertivas dos parágrafos acima encontram respaldo na jurisprudência:
"RECURSOS OFICIAL E DE APELAÇÃO - AÇÃO DE PROCEDIMENTO ORDINÁRIO - DIREITO TRIBUTÁRIO - ICMS - AIIM - DEVOLUÇÃO DE MERCADORIAS - PRETENSÃO À INEXIGIBILIDADE DO TRIBUTO E NULIDADE DO RESPECTIVO AIIM - POSSIBILIDADE. 1. A devolução de mercadorias, em favor da empresa alienante, sem a remessa ao destinatário final, não caracteriza o fato gerador do ICMS. 2. Os elementos de convicção produzidos nos autos, principalmente, a prova pericial, demonstram que a devolução das mercadorias decorre da anulação de operação anterior. 3. Inexigibilidade tributária, reconhecida. 4. Arbitramento dos honorários advocatícios recursais, a título de observação, nos termos do artigo 85, § 11, do CPC/15. 5. Ação de procedimento ordinário, julgada procedente. 6. Sentença, ratificada, inclusive, com relação aos encargos da condenação e os ônus decorrentes da sucumbência. 7. Recursos oficial e de apelação, apresentado pela parte ré, desprovidos, com observação."4
Portanto, na esteira do que foi dito até aqui, em situações como a presente ocorre (I) inexistência de obrigação acessória imputável ao contribuinte que devolveu as mercadorias, (II) impossibilidade de presunção de omissão de receita pelo simples cruzamento de dados, (III) impossibilidade de exigir do contribuinte apenas um tipo de prova e (IV) inexistência de fato gerador do ICMS na devolução de mercadorias, entendemos pelo desacerto do entendimento do fisco capixaba, que pode ser revisto por meio de medida judicial.
1 "Art. 122. Sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto.
(...)
Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal"
2 (TJSP; Apelação Cível 9146536-80.2007.8.26.0000; relator (a): Vicente de Abreu Amadei; órgão julgador: 2ª Câmara Extraordinária de Direito Público; Foro de Guarulhos - 3ª Vara Civel; data do julgamento: 5/6/14; data de registro: 9/6/14)
3 (REsp 901.311/RJ, rel. ministro Teori Albino Zavascki, rel. p/ acórdão ministro LUIZ FUX, 1ª turma, julgado em 18/12/07, DJe 6/3/08)
4 (TJSP; Apelação Cível 1001813-44.2014.8.26.0070; relator (a): Francisco Bianco; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Foro de Batatais - 2ª vara Cível; data do julgamento: 11/2/19; data de registro: 11/2/19)
_________
*André Felipe Cabral de Andrade é advogado do escritório Silva Filho Advogados.