A quem atribuir a função de agente de execução - uma opinião portuguesa
A experiência portuguesa firmada pela atual Diretora da Comissão de Disciplina dos Auxiliares da Justiça - CAAJ, especialmente quanto à formação e fiscalização dos agentes de execução e incompatibilidade para o exercício de mandato judicial dos agentes advogados.
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Atualizado às 16:02
Uma das primeiras preocupações sentidas pelo legislador no início de uma reforma da ação executiva em que se preveja a criação da figura do agente de execução, como ator principal da desjudicialização, será determinar quem deve exercer as funções desse agente na execução civil.
Poder-se-á questionar se as funções de agente de execução devem ser entregues a um profissional do foro, já com experiência forense adquirida, ou se deve ser criada uma profissão ex novum e especialmente vocacionada para a realização de todos os atos processuais relevantes no âmbito da tramitação do processo executivo.
Independentemente da opção do legislador em atribuir tais funções - adicionando a um profissional já existente ou criando um novo -, deve, desde sempre, haver preocupação em compatibilizar o regime que regule o acesso à nova atividade e o seu exercício, os níveis de exclusividade ou de acumulação de funções, bem como as incompatibilidades ou impedimentos com outros tipos de atividades.
Ora, em Portugal e à data da reforma da ação executiva, de entre as profissões jurídicas privadas que se considerou estarem habilitadas ao exercício da função de agente de execução, encontravam-se apenas a de advogado e de solicitador, por contraposição ao oficial de justiça público, presente nas secretarias judiciais, atentando-se ao fato de que a reforma do notariado encontrava-se apenas em estudo.
A opção legislativa foi a de atribuir as funções de agente de execução ao profissional jurídico cujas funções mais se assemelhavam com as funções administrativas então executadas pelo oficial de justiça e de entre os profissionais liberais, a atividade do solicitador era a que mais se aproximava do que era exigido ao agente de execução.
No entanto, tratando-se de funções novas e exigindo-se a estruturação de escritórios/empresas, com métodos de trabalho e de gestão processual diferentes da atividade até então prosseguida, foi necessário capacitar os solicitadores para o desempenho das novas funções jurídicas, ministrando a formação específica do novo regime jurídico a implementar, das regras de deontologia profissional, bem como das noções de gestão de contabilidade administrativa-financeira.
Não era, nem seria, expectável que o desempenho de uma nova profissão jurídica como a de agente de execução não fosse acompanhado de uma capacitação em diferentes níveis, através de formação específica, quer jurídica, quer de gestão processual, contabilística e financeira, bem como de gestão empresarial, mediação de conflitos e investimento tecnológico (ao nível de conhecimento e de equipamentos). Qualquer profissional jurídico a quem seja atribuída a função de agente de execução - quer seja advogado, solicitador, notário ou tabelião de protesto -, haverá sempre que se adaptar à realidade específica das funções de agente de execução, com a inerente qualificação técnica. O argumento de que uma determinada classe profissional encontra-se mais apta ao desempenho da função de agente de execução por deter mais qualificações em detrimento de outra é facilmente rebatível com o maior ou menor investimento (do Estado e do profissional) necessário à capacitação do agente.
Análise bem diferente e mais exigente, cuja realidade poderá ser mais ou menos expressiva dependendo das assimetrias do território brasileiro e da sua distribuição geográfica versus densidade populacional e processual, é a necessidade de determinar universos de processos a desjudicializar e o seu rácio pelos profissionais que abraçarão tal desafio. Parece-nos essencial graduar e dimensionar estruturas ao número de processos por agente de execução para que a gradual transferência de competências ocorra com o máximo de êxito, de modo a que a assunção de funções ocorra da forma mais tranquila possível. Quanto mais real for a dimensão do problema identificado, mais facilmente será encontrada a solução para a questão de que o profissional mais apto para o exercício de funções será aquele que maior facilidade terá em ver ampliadas as suas funções, aproveitando os conhecimentos, as estruturas e meios que já tem ao seu dispor, adaptando à realidade do que seria uma secretaria judicial de um tribunal.
Tal questão é tão verdadeira quer se opte pela solução de equiparação dos tabelionatos de protesto a agentes de execução, quer se atribua tal função a outros profissionais liberais, como, por exemplo, os advogados ou solicitadores. Em qualquer caso, há que garantir a supervisão dos profissionais e a adequação das suas funções ao volume de processos que sejam capazes de tramitar, com a exigência e padrões de qualidade internacionalmente exigidos, através de mecanismos de regulação do mercado, com poderes de supervisão preferencialmente atribuídos a uma entidade independente.
Não obstante, parece-nos muito razoável que a opção legislativa a seguir seja a de aproveitamento de estruturas já existentes, adaptando-as à realidade visionária. Ao fazermos o paralelismo com os benefícios obtidos no sistema judicial português, não é difícil prever um descongestionamento do sistema por mera retirada dos processos dos tribunais, reafectando e capacitando outras estruturas administrativas dimensionadas para o efeito, que já desempenham funções relacionadas com os títulos executivos. Alargando as competências do Tabelião de Protesto, e reconhecendo-o como agente de execução, estar-se-á a otimizar as suas funções, completando-as, aproveitando as estruturas já existentes e enraizadas no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, cremos ser ainda necessário um investimento de adaptação e evolução, de forma que a capacidade de tramitação do processo executivo seja gradual - não haverá distribuição automática, conforme o projeto de lei em andamento no Senado Federal brasileiro.
A par da atribuição de competências de agente de execução a oficial público-privado ou privado estará a necessidade de controle da atividade. Ao desjudicializar a execução civil, o Estado estará a retirar do sistema judiciário grande parte desse controle, pelo menos, a parte que não ficará sob o controle jurisdicional do juiz do processo. No entanto, o Estado não poderá afastar-se desse controle, devendo transferí-lo para uma entidade de supervisão contínua da atividade do agente de execução, que deverá funcionar como garante do Estado no sistema de cobrança de dívidas que deixou de ser exclusivamente judicial.
Para tanto, tal entidade não poderá ser aquela que já detenha o controle sobre uma classe profissional, como a dos advogados ou solicitadores, ou seja, em Portugal, a Ordem dos Advogados ou a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução.
No início, em Portugal, o acesso à profissão de agente de execução encontrava-se circunscrito aos profissionais liberais solicitadores. Quando tal acesso passou a ser alargado também aos advogados, não faria sentido que se atribuísse a competência de supervisão apenas a uma das associações representativas dos profissionais que davam acesso à profissão de agente de execução (advogados ou solicitadores) ou que se atribuísse a ambas tal poder de decisão sobre os seus representados, podendo eventualmente gerar discrepâncias de rigor e de decisão sobre a mesma situação de facto, apenas pela circunstância de tal competência não se encontrar adstrita a um só órgão, o qual, devidamente equidistante da então Câmara dos Solicitadores (atual Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução) e da Ordem dos Advogados, pudesse aferir com a imparcialidade e isenção necessárias também ao exercício das funções de agente de execução.
Assim, assistimos - grosso modo - a uma transferência de competências que anteriormente encontravam-se a cargo dos órgãos deontológicos da Câmara dos Solicitadores para um novo órgão criado em 2008, a CPEE - Comissão para Eficácia da Execução -, independente da Câmara dos Solicitadores e da Ordem dos Advogados, que procurou assegurar a tomada de decisões com base em parâmetros uniformes, independentemente do agente de execução ser solicitador ou advogado e com a imparcialidade e isenção que igualmente é exigida ao agente de execução em exercício de funções.
Se considerarmos que a figura do agente de execução nasce da natural sucessão das funções que se encontravam a cargo do funcionário judicial, funções essas públicas, em lugar de se criar todo um novo regime de impedimentos autónomo e exclusivamente aplicável aos agentes de execução, foi opção do legislador português aplicar diretamente - por remissão - o regime aplicável aos oficiais de justiça e aos magistrados judiciais. Por essa razão, não faria sentido atribuir tais competências de controle e supervisão a uma ordem profissional e sim a uma entidade independente.
Aquando da reforma da ação executiva em Portugal - em 2008 -, constituía impedimento legal do agente de execução (quando era apenas advogado ou solicitador) a representação judicial de alguma das partes ocorrida nos últimos dois anos, ao abrigo da alínea b) do n.º 2 do artigo 121.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores.
Pressupunha-se que caso esta limitação - como impedimento - não resultasse ope legis, facilmente poderia-se configurar uma situação em que a isenção e imparcialidade do agente de execução em funções resultasse afetada, pois tendo existido um mandato judicial de uma das partes em momento prévio ao da atividade agora desenvolvida pelo agente de execução, a dissociação das duas funções, ainda que em momentos distintos, poderia revelar-se insustentável.
A intenção do legislador na limitação prevista neste impedimento legal teve por base a adoção de um critério meramente temporal, observando, naturalmente, à anterior experiência profissional do agente de execução em suas funções - na expectativa de que não se deveria condicionar ad infinitum a sua atividade enquanto agente de execução.
Porém, mais tarde, houve evolução legislativa nesse sentido e desde 2015 a lei 154/15, de 14/09, prevê no seu artigo 3.º, n.º 13 do diploma preambular à aprovação do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução que "Os solicitadores e advogados que exerçam funções de agentes de execução regularmente inscritos na Câmara dos Solicitadores, relativamente aos quais se verifique incompatibilidade relativa ao mandato judicial, devem pôr termo a essas situações de incompatibilidade até 31 de dezembro de 2017, sem prejuízo de poderem prosseguir com os mandatos judiciais já constituídos até à data da entrada em vigor do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, aprovado em anexo à presente lei".
Nesse passo, não obstante não ter sido a opção inicial do legislador português em fazer a separação total das funções do advogado, do solicitador e do agente de execução, houve lugar a um distanciamento de forma gradativa das funções de agente de execução das demais, a tal ponto que acabou por exigir a total incompatibilidade para o exercício do mandato judicial. Tal imposição pretendeu estancar e evidenciar a necessidade de distinção de funções entre as profissões jurídicas, de forma a que as mesmas não se confundam nem facilitem a ocorrência de conflitos de interesses ou impedimentos, colocando em crise o fim último da ação executiva, da recuperação de créditos e da dinamização da economia, sendo o controle da atividade do agente de execução exclusivamente atribuída a uma entidade independente e imparcial.
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*Inês Caeiros é diretora da Comissão de Disciplina dos Auxiliares da Justiça desde 2014. Foi Membro do Grupo de Gestão da Comissão para a Eficácia das Execuções. Foi advogada. Graduação em Direito, Pós-Graduação em Direito Bancário e Pós-Graduação em Direito Sancionatório Administrativo, sempre pela Universidade de Lisboa.