Não existe Justiça 4.0 no Brasil 1.0
Muito se diz e se escreve sobre a chamada "Justiça 4.0", a Justiça da acessibilidade, da inclusão digital, da eliminação de fronteiras físicas entre partes, advogados, juízes, promotores e demais operadores do Direito.
quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Atualizado em 1 de outubro de 2020 16:51
Conforme o art. 5º, IV, da Constituição Federal de 1988, "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". É importante, nos dias de hoje, que esta seja a introdução deste texto.
Muito se diz e se escreve sobre a chamada "Justiça 4.0", a Justiça da acessibilidade, da inclusão digital, da eliminação de fronteiras físicas entre partes, advogados, juízes, promotores e demais operadores do Direito. São concebidos "robôs" e algoritmos capazes de distribuir mandados e demais expedientes, aplicativos de acesso, consulta e mesmo de peticionamento, "vende-se" a ideia de modernização da Justiça a ponto de que alguns entusiastas digam que os robôs, em breve, substituirão os juízes.
Mas não posso deixar de me indagar: foi a isso que nos reduzimos?
O vocábulo "sentença" provém do verbo latim sentire, que nada mais é do que a tradução do "sentimento" do julgador ao se deparar com o caso concreto e propor-lhe uma solução. Há um elemento de subjetividade, portanto, inerente aos julgamentos humanos, que não poderia ser simplesmente substituído por uma "sopa de letrinhas" de "zeros" e "uns" embaralhados para formar um código de programação.
Não se nega que no futuro a inteligência artificial possa vir a ser apta a reproduzir a subjetividade humana, mas no momento, perdoem-me o ceticismo, isso não passa de enredo de ficção científica.
Este que aqui escreve, não por opção própria, acabou potencializando, através de uma ata de audiência sobre exclusão digital e incomunicabilidade de depoentes, o debate em torno das audiências chamadas "telepresenciais", notadamente aquelas destinadas à produção da prova oral (depoimentos pessoais e testemunhais). E desde então, não foram poucas as opiniões emitidas sobre o tema, seja a favor de tal procedimento, seja contra. Então, pensei que eu também deveria dar o meu breve "pitaco" sobre a questão.
De plano, tenho um problema semântico com o neologismo "telepresencial". Se o prefixo "tele", de origem grega, significa "remoto", "distante", "longe", como ao mesmo tempo poderia ser "presencial"? Certa feita, escrevi que se eu chamasse um cachorro de cavalo ele não começaria a relinchar e a galopar, então não vejo muito sentido nesse "neo" vocábulo. Mas sigamos...
Creio que um bom debate precise de dados concretos para ser alicerçado na realidade. Então, vamos a eles.
Em matéria de 27/5/201, a revista eletrônica Forbes divulgou alguns dados de relevo: a) 45% das famílias brasileiras com renda de até 1 salário mínimo não possuem acesso à internet; b) 35% dos lares na região Nordeste sofrem de exclusão digital; c) apenas em 14% das residências das classes D e E existe um computador.
Em uma entrevista de 5/8/202, o ativista e empreendedor italiano Stefano Quintarelli foi categórico ao afirmar que, no contexto da pandemia de covid19, a alta taxa de excluídos digitalmente no Brasil e no Mundo representaria o alargamento do fosso de desigualdade social entre ricos e pobres.
Ainda, em matéria de 29/4/203 do sítio eletrônico UOL, foram constatados os seguintes apontamentos: a) 45,9 milhões de brasileiros não possuem nenhum acesso à internet (cerca de 25% da população brasileira); b) 41,6% dos excluídos digitalmente sustentaram que não sabiam usar a internet; c) 17,5% das pessoas deste universo afirmaram que os equipamentos de acesso à internet lhe são caros demais; d) 13,8% das pessoas sem acesso à internet, da Região Norte, destacaram ausência do serviço em sua localidade.
E todas essas pesquisas denotam, entre as classes mais baixas, a preponderância do uso do celular para acesso à internet.
Recentemente eu divulguei em minhas redes sociais uma imagem de "barracos" em uma comunidade carente em meio ao esgoto a céu aberto e questionei se fazia parte da vida dessas pessoas o acesso cotidiano a internet banda larga apta a permitir uma conexão prolongada de áudio e vídeo para uma audiência de instrução "telepresencial". O fato chamou a atenção de muitos, mas é a realidade que se verifica perante as classes D e E da população brasileira.
Muito se diz sobre a possibilidade de acesso por meio do celular, mas o que se olvida é o consumo de dados e o tempo natural necessário para a realização de uma instrução plena, que raramente consome menos de 30 minutos em uma videoconferência. Se o indivíduo usar celular pré-pago, seus créditos se esvairão (situação que este que vos escreve já presenciou); se usar celular pós-pago, poderá atingir o limite de sua franquia.
Qual é o efeito natural desse cenário? O deslocamento de partes e testemunhas para os escritórios de advocacia para que consigam o acesso virtual e a própria operacionalização do sistema. De um lado, prejudica-se a incomunicabilidade dos depoentes (CPC, art. 456). De outro, olvidam-se as recomendações de distanciamento social, que justificaram o próprio fechamento dos fóruns e a adoção das audiências por videoconferência. Em certa audiência, há cerca de três semanas, um dos advogados teve que receber o reclamante em sua casa...
Um pequeno adendo aqui: o sistema CISCO WEBEX não é intuitivo, por vezes apresenta falhas na conexão de áudio e vídeo, e demanda certo treinamento para sua operacionalização. E tanto esse sistema quanto outros, como o GOOGLE MEET, não são livres de ataques, como recentes episódios nos mostraram, com hackers invadindo sessões de tribunais com vídeos e áudios ofensivos e jocosos.
Recordo-me dos bons tempos das aulas de pós-graduação no Largo de São Francisco, mais especificamente nas aulas de Tutela de Urgência do Sistema Italiano, nas quais o professor Flávio Luiz Yarshell por vezes questionava, afinal, o que a sociedade buscava da jurisdição, o escopo primário (justiça), ou o escopo secundário (celeridade)? Encarar os processos como números e preencher protocolarmente pautas de instrução virtuais sem se preocupar com a qualidade do ato processual é o que se espera do Poder Judiciário?
A "clientela" que bate às portas da Justiça do Trabalho, hoje, é muito heterogênea. Mas ainda preponderam os trabalhadores de baixa remuneração e os pequenos empresários que lutam com seu capital de giro para prosseguirem em sua atividade. Quem quiser saber o que é o real Processo do Trabalho, pegue uma lotação abarrotada de São Mateus até o Metro Carrão (Zona Leste de São Paulo) às 6h da manhã, espremendo-se entre incontáveis trabalhadores para os quais a expressão "distanciamento social" apenas enfeita belos discursos na mídia.
O Processo do Trabalho é o processo do assalariado que sustenta sua família com um a dois salários mínimos, do sujeito que vai a pé para o trabalho porque não recebe vale-transporte, do dono daquele boteco de esquina que deixa de pagar o IPTU para poder pagar o aluguel do salão e o salário do seu balconista (isso quando consegue pagar).
"Blockchains", "interface", "algoritmos", e outros termos são uma realidade distante de pessoas que no momento dependem de auxílio do governo para comer. Estamos nos descolando da realidade que nos cerca.
Não adianta invocar uma suposta "Justiça 4,0" quando o Brasil, no que tange ao acesso efetivo das pessoas a tais bens tecnológicos, apresenta-se a passos lentos e desconcertados. A Justiça pode até tentar ser 4.0, mas o Brasil está mais para aquele carrinho 1.0 lotado de gente subindo a serra quase parando.
Ao tratarmos processos como apenas códigos de números impressões na folha da "pauta virtual do dia", sem considerar essas questões, minimizamos a importância do contato pessoal, do "olho no olho", da efetiva presença (não "tele" presença) do Judiciário na vida dessas pessoas. E aí, de fato poderemos nos dizer obsoletos frente a processadores "hipercéleres" que possam simular uma infinidade de cenários até chegar à suposta "sentença perfeita", afinal, se nós mesmos deixamos de "sentir", por que exigiríamos isso dos robôs?
Eu, particularmente, prefiro o "bom e velho normal".
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*Diego Petacci é juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor universitário. Escritor.