Inconstitucional, errado e imoral
Sofremos o processo da gangsterização da política.
quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Atualizado em 1 de outubro de 2020 16:37
Ao dispor sobre o Poder Legislativo a Constituição determina, na seção consagrada às reuniões, que "cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente" (art. 57, § 4º).
O dispositivo conserva a redação original. Não foi alcançado pela EC 50, de 2006, que lhe alterou a parte inicial. Conclui-se, portanto, que a vontade da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986 pelo povo, permanece inviolada há mais de 30 anos. Segundo a letra da Constituição não é permitido, salutar e defensável, do ponto de vista ético e democrático, a reeleição dentro da mesma legislatura dos integrantes das mesas condutoras da Câmara dos Deputados e do Senado.
Assim se passava também com o presidente da República desde a Constituição de 1891. A emenda 16, de 1967, violou o tradicional princípio da não reeleição para permiti-la a Fernando Henrique Cardoso, Chefe do Poder Executivo. O ex-presidente FHC, em recente artigo publicado no Estadão, pediu desculpas à Nação, arrependido por haver consentido em se reeleger. Tarde demais. O exemplo produziu maus frutos e hoje, o presidente do senado Davi Alcolumbre, faz aberta campanha entre senadores para continuar à frente da presidência da Casa no biênio 2021-2022 e, provavelmente, nos dois biênios subsequentes.
O que leva obscuro representante do Amapá a tomar a iniciativa indecorosa de violar a lei fundamental? Respondo: a ilimitada ambição de poder. Desprovido de coragem para alterar o claríssimo texto constitucional, mediante indecorosa emenda, S. Exa. pensa fazê-lo com a manipulação do regimento interno e a cumplicidade dos seus pares. Não duvido que consiga fazê-lo, apesar da flagrante inconstitucionalidade, sobretudo agora quando o STF, incumbido pela lei fundamental de protegê-la contra violências, teria sinalizado que lavaria as mãos, como pilatos no credo.
Enfim, seguidamente violada pelos mais variados pretextos, a Constituição é como a mulher de má fama que perdeu a respeitabilidade. Não se põe em dúvida que o senador Alcolumbre se reelegerá e que permanecerá na presidência. É o seu sinistro objetivo. Sofremos o processo da gangsterização da política. Não fosse assim, jamais alguém se aventuraria a buscar se reeleger diante da vedação constitucional.
A ambição é insaciável, escreveu Pítaco de Mitilene (640AC-568AC). Edward Guibbon, autor de Declínio e Queda do Império Romano (1737-1794), registrou "de todas as nossas paixões e apetites, o amor ao poder é o de natureza mais imperiosa e insociável, pois a soberba de um homem exige a submissão da multidão".
Davi Alcolumbre é dominado pela soberba e incapaz de deixar voluntariamente o poder. Procura ignorar que a reeleição é proibida por norma de hierarquia constitucional, contra a qual não prevalece o regimento interno.
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*Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.