A (im)possibilidade da relativização da regra de corroboração do § 16, do artigo 4º da Lei das Organizações Criminosas, através da mutual corroboration
É possível que as declarações de um colaborador sejam confirmadas, exclusivamente, pelas declarações de outro? Quais são os limites impostos pelo legislador quanto à "regra de corroboração"?
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Atualizado às 13:19
Como se sabe, em meio à expansão da justiça negocial, principalmente com a deflagração da Operação Lava a Jato, - que desmantelou esquemas gigantescos envolvendo organizações criminosas e provocou o expressivo aumento no número de colaborações - muito se passou a discutir acerca dos limites da utilização da colaboração premiada para fins de condenação de corréus.
Em conjunto ao cenário político marcado pelo clamor público em busca do combate às organizações criminosas e punição de seus membros, a discussão foi acentuada pela omissão legislativa quanto aos elementos externos capazes de confirmar o conteúdo das declarações dos colaboradores, denominados elementos extrínsecos de confirmação.
Um ponto interessante foi o questionamento acerca da seguinte hipótese: se, no caso de uma colaboração premiada, dois colaboradores, com declarações convergentes, imputam determinado crime à terceiro, poderão essas declarações serem consideradas elementos corroborativos de si mesmas, que, portanto, justifiquem uma condenação? Em outras palavras: uma declaração poderá ser elemento corroborativo válido de outra?
É o que se intitula de corroboração mútua, recíproca ou cruzada (mutual corroboration). Nas palavras de Badaró:
A lei não define a natureza do meio de prova do qual advirão os elementos de corroboração do conteúdo da delação. Em princípio, portanto, a corroboração pode se dar por intermédio de qualquer meio de prova ou meio de obtenção de prova: documentos, depoimentos, perícias, interceptações telefônicas... Mas uma questão interessante é se serão suficientes para justificar uma condenação duas ou mais delações com conteúdos concordes. É o que se denomina mutual corroboration ou corroboração cruzada. Ou seja, o conteúdo da delação do corréu A, imputando um fato criminoso ao corre'u B, ser corroborado por outra delação, do corréu C, que igualmente atribua o mesmo fato criminoso a B.1
Optamos por defender, neste artigo, a tese da impossibilidade da relativização da regra de corroboração através da utilização da corroboração mútua, recíproca ou cruzada (mutual corroboration) como elemento extrínseco de confirmação, o que passaremos a demonstrar a seguir.
Vejamos.
Foi firmado pela doutrina e jurisprudência o entendimento de que não se admite a utilização de elementos que provenham unicamente do colaborador como elemento corroborativo idôneo, na medida em que esses não ostentam a natureza de elemento probatório independente, e o juízo de corroboração deve ser, conforme Hartmann2, necessariamente de cunho externo.
Dessa forma, por ter igual natureza, também não se admitirá que a declaração de um colaborador seja corroborada por um elemento que é proveniente unicamente de outro colaborador, que é sua própria declaração.
A existência de declarações concordes, prestadas por mais de um colaborador, tampouco suprem a exigência legal do parágrafo 16, do artigo 4º, da lei 12.850/13, pois não deixarão de ostentar a natureza jurídica de meio de obtenção prova, apenas pelo fato de igualmente imputarem um crime à terceiro.
Ora, se, diante dos problemas da parcialidade e interesse - intrínsecos do instituto da colaboração premiada - a lei afirma não serem suficiente as declarações isoladas de um colaborador, porque se permitiria que duas ou mais declarações isoladas, de corréus que se encontram na mesma situação, fossem capazes de relativizar a mencionada regra?
De acordo com Roberta Casiraghi, resta evidente que essa declaração não poderá ser considerada apoiada por um elemento que seja afetado pelo mesmo "defeito genético".3
Podemos concluir, dessa maneira, que a declaração de um colaborador "A", não poderá ter sua debilidade sanada pela declaração de "B", já que ambas possuem natureza inferior, ou seja, uma declaração não ganhará credibilidade com outra, a ponto de provar sua veracidade, mesmo que sugira que aquela história seja real.4
Assim, chega-se a uma questão central: que razões têm dois ou mais colaboradores, possivelmente, em conluio, para imputar falsamente um fato criminoso à terceiro, visando sua condenação?
Ora, um dos motivos mais plausíveis é eximir-se de responder a fato criminoso que tenham vindo a cometer em conjunto, separadamente, ou até para proteger terceiro que tenha vindo a praticá-lo.
Além disso, ainda que fugir da responsabilização criminal não seja o objetivo, importante notar que a necessidade da eficácia da colaboração para concessão de benefícios, conforme artigo 4º, parágrafo primeiro, da lei 12.850/135, também constitui motivo para a elaboração de uma mentira.
Isso porque é perfeitamente possível que os colaboradores se utilizem de uma delação que não condiz com a verdade, travestida de imputação verdadeira, para assegurar que suas colaborações sejam eficazes, já que ambas atuaram, pelo menos, na "identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas," um dos resultados previstos nos incisos do artigo 4, da lei 12.850/13.6
Para corroborar ainda mais a existência de razões para se realizar uma imputação falsa, citaremos o fato de que o parágrafo segundo deste mesmo artigo prevê que, considerando a relevância da colaboração, poderá ser concedido o perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial.7
A ilusão de uma relevância gerada pela identificação de coautores poderá conceder aos colaboradores o mais cobiçado dos prêmios: o perdão judicial. Permitir que as declarações convergentes dos colaboradores corroborem a si mesmas, relativizando a regra de corroboração é facilitar a ocorrência de uma cristalina violação ao processo penal.
Estaríamos diante de expressiva ofensa ao princípio da presunção de inocência, também denominado princípio da não culpabilidade, adotado pela CF no artigo 5º, inciso LVII - que reconhece o estado de inocência do réu, até que definitivamente se prove o contrário - caso admitíssemos que um corréu fosse considerado culpado somente com base em mais de uma delação, não fortalecidas por dados externos.
Evidente, portanto, que o legislador, ao estabelecer o caráter de meio de obtenção de prova da colaboração8 buscou evitar a violação de garantias constitucionais, tornando a regra de corroboração, ou seja, a necessidade da presença de elementos de corroboração extrínsecos às declarações do colaborador, uma importante exigência para a utilização do instituto negocial em análise.
As acusações feitas por "A" e "B" em relação à "C", sem respaldo em outros elementos, não poderão constituir prova. Álissa Matsutani faz alusão à matemática para justificar a impossibilidade dessa corroboração cruzada:
Pode-se comparar esta situação com uma simples operação matemática: zero somado a zero e' equivalente a zero. Do mesmo modo, o depoimento de um delator, sem valor absoluto, somado a outro depoimento, sem valor absoluto, equivale a um terceiro elemento, sem qualquer valor probatório.9
Por tais razões, não se pode admitir a mutual corroboration (corroboração mútua, recíproca ou cruzada).
Mas não é só.
Não se pode olvidar que os motivos pelo qual se veda a mutual corroboration, podem não emanar, tão somente, do perigo advindo dos colaboradores. A regra também serve de proteção aos corréus contra possíveis arbitrariedades do órgão acusador e dos magistrados.
Isso visto que, em certos casos, é possível identificar o interesse - por parte da acusação, ou até mesmo da figura do julgador - em uma condenação a qualquer custo. Essa afirmação é facilmente comprovada se observarmos, por exemplo, um cenário onde a população clama pela justiça sem demandar a observância de garantias processuais, levando o órgão acusador à busca incessante pela punição dos acusados, como vivenciamos em alguns processos da Operação Lava a Jato.
A prova de culpa, baseada tão somente em tais declarações, aumentaria o risco de condenações falsas, já que, diante da dificuldade de se comprovar os fatos alegados na delação de um indivíduo integrante de uma complexa organização criminosa, o julgador poderia vir a condenar um corréu sem a necessidade provas concretas.
Também por tais razões é que não se deve admitir a corroboração cruzada.
Concluindo, não obstante o entendimento no sentido contrário - vale ressaltar, minoritário - a Suprema Corte já teve a oportunidade de se posicionar a respeito da corroboração cruzada e de sua ineficácia como elemento probatório no acórdão do HC 127.483, que reconheceu a validade do acordo de delação premiada assinado pelo doleiro Alberto Youssef na Operação Lava Jato
O ministro Dias Toffoli, baseando-se nos ensinamentos do professor Gustavo Badaró, asseverou que "para fins de corroboração das "declarações heteroinculpatórias" do agente colaborador, não são suficientes, por si sós, as declarações harmônicas e convergentes de outro colaborador."10
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1 BADARÓ, Gustavo. O valor probato'rio da delac¸a~o premiada: sobre o § 16 do art. 4o da Lei no 12.850/13. Revista Juri'dica Consulex, n. 443, fevereiro 2015, p. 26-29, grifo nosso.
2 HARTMANN, Stefan Espírito Santo. Corroboração das declarações na colaboração premiada. Disponível clicando aqui Acesso em 5 abr. 2020
3 CASIRAGHI, Roberta. La chiamata di correo: riflessioni in merito ala mutual corroboration, Diritto Penale Contemporaneo, nov. 2012, p. 11.
4 LIMA, Daniel; NETO, José Muniz. Disponível clicando aqui Acesso em 10 abr. 2020.
5 "[...] § 1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. BRASIL, Lei nº 12.850/13 de 02 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Brasília, DF. Disponível clicando aqui Acesso em 20 abr. 2020.
6 Pertinentes os comentários de Rodrigo Silva "O instrumento da colaboração premiada está sendo utilizado de forma recorrente, o que leva boa parte dos acusados a serem incentivados a colaborarem. E este incentivo ocorre, pois a ameaça de encarceramento está sempre presente. Ou seja, as colaborações são trocadas pela liberdade. Logo, a prisão cautelar acaba sendo um verdadeiro meio de tortura para o acusado. Com este modelo de colaboração, muitos acusados acabam formalizando acordos, sem qualquer consistência, nos quais inocentes, muitas vezes, são acusados para que colaboradores tenham os benefícios extravagantes oferecidos pelo Ministério Público. SILVA, Rodrigo Medeiros da. O Poder Negocial do Ministério Público nos Acordos de Colaboração Premiada. 2018. Disponível clicando aqui. Acesso em 20 abr. 2020
7 "[...] § 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). BRASIL, LEI Nº 12.850/13 DE 02 DE AGOSTO DE 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Brasília, DF. Disponível clicando aqui. Acesso em 20 abr. 2020. p.167
8 "Art. 3º-A "o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova." BRASIL. LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Brasília, DF. Disponível clicando aqui. Acesso em 30 abr. de 2020.
9 MATSUTANI, Álissa, O depoimento do colaborador e a justa causa para a deflagração da ação penal. Rio de Janeiro. 2019. p.62 . Monografia Escola de Magistratura do Rio de Janeiro.
10 STF, HC 127.483, Rel. ministro Dias Toffoli, Brasília, 27 ago. 2015. p. 2, 13 e 15. Disponível clicando aqui. Acesso em 10 mai. 2020.
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*Maitê Sampaio Rezende é advogada no escritório Tonini Advogados e Associados. Formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.