Aplicação da teoria do diálogo das fontes na solução de antinomia entre normas tributárias
A aplicação da teoria possibilita a compreensão das normas tributárias e a solução do conflito aparente, preservando a unidade sistêmica da legislação.
segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Atualizado às 15:40
Embora estudada como matéria de Direito Civil na academia, já se consagrou há muito tempo que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB é aplicável a todo o ordenamento jurídico, tanto que reconhecida como "lei das leis" ou "lex legum". Exemplo de sua aplicação ampla é o seu art. 2º, §2º1, dispositivo que estabelece critérios de solução de antinomia aparente entre normas.
Do estudo da LINDB e da estrutura da legislação contida na Constituição Federal, a doutrina especializada extraiu três critérios básicos de solução de conflito de leis no tempo: cronológico, hierárquico e de especialidade. No entanto, em razão da complexidade das relações sociais do mundo atual, refletida na atividade legislativa, esses critérios tradicionais podem ser insuficientes para a solução justa de uma controvérsia jurídica.
Nesse passo, a doutrina pós-moderna desenvolveu a teoria do diálogo das fontes para resolver o problema de antinomia de normas. Em vez de afastar a aplicação de uma norma em detrimento de outra, a teoria busca harmonizá-las, reconhecendo a unidade do ordenamento jurídico.
Essa tese foi idealizada pelo jurista alemão Erik Jaime, professor da Universidade de Helderberg, e trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Inicialmente voltada à proteção do consumidor, a Professora expôs a teoria do diálogo das fontes em três espécies2.
Na primeira, tem-se o "diálogo sistemático de coerência" em que ocorre a aplicação de duas leis e uma fornece o conceito de determinado instituto jurídico a outra, tal como ocorre na utilização conceitual da compra e venda do Código Civil para solucionar relação de consumo prevista no Código de Defesa do Consumidor.
A segunda espécie é o "diálogo sistemático de complementariedade e de subsidiariedade". Esse diálogo de fontes normativas permite que uma lei complete ou supra a lacuna de outra.
Por fim, a terceira espécie, denominada "diálogos de influências recíprocas sistemáticas", possibilita a coordenação e adaptação do sistema normativo em que leis gerais e especiais se influenciam mutuamente. Percebe-se que a teoria permite a aplicação simultânea, coerente e coordenada das múltiplas fontes legislativas para a solução de aparente antinomia, daí a utilização da expressão "diálogo", indicativa de uma solução flexível e aberta.
Atualmente, tanto a doutrina como a jurisprudência vem admitido a transcendência da referida técnica de interpretação do seu campo inicial de aplicação- o direito do consumidor -, para abranger outras áreas do ordenamento jurídico. É o que se percebe, por exemplo, nos REsp 1.272.827 e 1.184.765, ambos julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos, em que o Superior Tribunal de Justiça aplicou a teoria no primeiro caso para reconhecer a necessidade de garantia dos embargos à execução fiscal prevista na Lei de Execução Fiscal (lei especial) e, no segundo, para autorizar a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras independentemente do exaurimento de diligências extrajudiciais por parte do exequente, previsão contida em norma geral, porém mais benéfica ao credor tributário que a regra especial.
De fato, é salutar a aplicação da teoria do diálogo das fontes para solucionar antinomias na legislação tributária, palco de intensa sucessão de normas no tempo, emanadas tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo. Vele ressaltar, o Brasil tem o sistema tributário mais complexo do mundo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação - IBPT.
Um caso notório de aplicação de normas cronologicamente sucessivas, hierarquicamente diferentes e com graus de especialidade diversos é a redução de alíquota a zero de tributos que contenham finalidade extrafiscal. Nessa hipótese, a lei emanada do Congresso Nacional autoriza o chefe do Poder Executivo a promover a redução ou o aumento da alíquota, de acordo com a política econômica e social que pretende fomentar.
Ou seja, a competência do Poder Legislativo para elaborar leis deve coexistir com a competência igualmente constitucional do Poder Executivo para implementar as políticas públicas necessárias, inclusive majorando ou reduzindo as alíquotas dos tributos extrafiscais. Com efeito, o conjunto normativo resultante, leis, decretos, portarias etc. deve sempre respeitar a harmonia e a unidade do ordenamento jurídico.
Nesse contexto, a aplicação da teoria do diálogo das fontes, em especial da referida espécie dos diálogos de influências recíprocas sistemáticas, torna-se uma alternativa viável ao julgador para a solução do caso concreto. Partindo de uma compreensão sistêmica da legislação tributária, o desfecho da atividade do intérprete preserva tanto a competência do Executivo quanto do Legislativo.
Veja-se como tal solução é adequada no estudo de uma situação concreta, qual seja, a da alíquota do PIS/Pasep-importação e da Cofins-importação.
No art. 8º, § 12, da lei 10.865/04, o legislador reduziu a zero as alíquotas nas hipóteses de importação de diversos produtos descritos em cerca de 40 (quarenta) incisos. Contudo, em duas hipóteses específicas e previstas no § 11 do mesmo artigo3, em que inclusive consta a classificação dos produtos na Nomenclatura Comum do Mercosul - NCM, a opção legislativa foi autorizar o Poder Executivo a promover a redução a zero e o restabelecimento das respectivas alíquotas.
Diante da relevância da importação de produtos farmacêuticos e hospitalares para a promoção da saúde no território nacional, já se antevê aqui uma política pública a ser alcançada também pelo incentivo fiscal à importação dos insumos.
O exercício da citada faculdade ocorreu cerca de 4 (quatro) anos depois. Com efeito, o art. 2º do decreto 6.426, de 7 de abril de 2008, reduziu a zero as alíquotas do PIS/Pasep-importação e da Cofins-importação, incidentes sobre a operação de importação dos produtos farmacêuticos, cuja classificação foi discriminada em 8 (oito) incisos. São eles: I - na posição 30.01; II - nos itens 3002.10.1, 3002.10.2, 3002.10.3, 3002.20.1 e 3002.20.2; III - nos códigos 3002.90.20, 3002.90.92 e 3002.90.99; IV - na posição 30.03, exceto no código 3003.90.56; V - na posição 30.04, exceto no código 3004.90.46; VI - no código 3005.10.10; VII - nos itens 3006.30.1 e 3006.30.2; e VIII - no código 3006.60.00.
Ocorre que o superveniente art. 12 da lei 12.844/13 alterou a redação do art. 8º, § 214, da lei 10.865/04 para acrescentar um ponto percentual às alíquotas da Cofins-importação na hipótese de importação dos bens classificados na Tabela TIPI (Tabela de incidência do Imposto sobre produtos industrializados).
Essa redação permaneceu vigente até a edição da lei 13.670/18 que limitou a majoração das alíquotas até 31 de dezembro de 2020 e especificou os códigos sobre os quais a exação deve recair.
Pois bem, após a vigência da norma que majorou genericamente a alíquota da COFINS-importação, o Fisco passou a exigir, indiscriminadamente, o recolhimento da Contribuição no desembaraço aduaneiro sob o entendimento que a lei 12.844/13 teria revogado o decreto 6.426/08. A Fazenda Nacional sustenta que o conflito aparente de normas é solucionado pelos critérios temporal e de hierarquia, pois a lei é posterior e está acima do referido Decreto na estrutura normativa.
É evidente, porém, que nos termos do art. 2º, §2º, da LINDB, o critério de solução da antinomia aparente nesse caso deve ser o da especialidade. Não obstante, propõe-se também a solução pela aplicação da teoria do diálogo das fontes.
A fonte normativa principal é o dispositivo que autorizou o Poder Executivo a reduzir a zero as alíquotas (art. 8º, §11, da lei 10.865/04), o qual permanece até o presente momento em vigência e com a redação originária. Também não houve o esvaziamento da autorização legislativa pois os produtos sobre os quais a redução das alíquotas pode recair continuam sendo elencados nos dois incisos do referido artigo.
O art. 2º do decreto 6.426/08 também não foi objeto de revogação ou alteração pelo Poder Executivo, revelando que, deveras, o Governo Federal ainda mantém o interesse na redução a zero das alíquotas.
Isso porque grande parte dos medicamentos importados sem a exação são adquiridos pela própria União, no âmbito do Programa de Assistência Farmacêutica mantido pelo Sistema Único de Saúde - SUS. É imperioso destacar que, no caso da incidência da majoração em 1% das alíquotas da Cofins-importação, ela não sairia de zero para 1%. A alíquota normal, porém, reduzida a zero, era de 9,9% e, com a majoração, passou a 10,9%. Assim, evidente o efeito benéfico da redução da carga tributária para a manutenção da assistência farmacêutica ofertada pelo SUS.
Parece claro então que a continuidade da vigência do art. 8º, §11, da lei 10.865/04 e do art. 2º do decreto 6.426/08 não invalida a lei 12.844/13, do mesmo modo que esta não revoga aquelas. A lei posterior e geral deve ser compreendida em um sistema harmônico e de diálogo com as demais normas, em especial por estarem todas elas alocadas no mesmo ramo do direito.
Desse modo, a aplicação da majoração em 1% prevista de modo geral na lei 12.844/13 ocorre para quem já estava submetido à incidência normal, portanto, sem a redução a zero das alíquotas. Conclui-se que os produtos importados com alíquota zero sofreram a majoração genérica de 9,9% para 10,9%. Contudo, o Poder Executivo, devidamente chancelado pelo legislador ordinário, manteve o interesse extrafiscal de reduzir as alíquotas a zero e o Congresso Nacional não revogou tal autorização.
Assim, para incidir a majoração nos moldes defendidos pelo Fisco, o Congresso deveria cassar a autorização para o Poder Executivo reduzir a zero as alíquotas ou o próprio Governo deveria revogar ou alterar o mencionado decreto, de acordo com seus interesses, pautados pela política econômica e social.
Se um desses dois eventos tivesse ocorrido durante a vigência da lei 12.844/13, as importadoras já seriam obrigadas a recolher a Cofins-importação com a majoração de 1%, ou seja, 10,9%. Eis o diálogo das fontes.
O Superior Tribunal de Justiça, cuja missão constitucional é conferir unidade à legislação federal, irá apreciar um caso em que se discute a aplicação das referidas leis. No dia 15/9/20, a 1ª turma do STJ poderá definir que a redução a zero contida no decreto 6.426/08 não foi revogada pela lei 12.844/13, como entende a Fazenda Nacional. Trata-se do Resp 1.840.039/SP, cujo relator é o exmo. sr. ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Diante da relevância da matéria, conforme exposto nesta breve explanação, espera-se que o Tribunal da Cidadania exerça seu papel constitucional de intérprete das leis federais sem desconsiderar o impacto econômico e social de suas decisões.
Em conclusão, a aplicação da citada teoria possibilita a compreensão das normas tributárias e a solução do conflito aparente, preservando a unidade sistêmica da legislação.
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1 Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. (...) § 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
2 MARQUES. Claudia Lima. Manual de Direito do Consumidor. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marque e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo. TR, 2007. Pág. 91.
3 Art. 8º As contribuições serão calculadas mediante aplicação, sobre a base de cálculo de que trata o art. 7º desta Lei, das alíquotas: (Redação dada pela Lei nº 13.137, de 2015) (...) §11. Fica o Poder Executivo autorizado a reduzir a 0 (zero) e a restabelecer as alíquotas do PIS/PASEP-Importação e da COFINS-Importação, incidentes sobre: I - produtos químicos e farmacêuticos classificados nos Capítulos 29 e 30 da NCM; II - produtos destinados ao uso em hospitais, clínicas e consultórios médicos e odontológicos, campanhas de saúde realizadas pelo Poder Público e laboratórios de anatomia patológica, citológica ou de análises clínicas, classificados nas posições 30.02, 30.06, 39.26, 40.15 e 90.18 da NCM. (Redação dada pela Lei nº 11.196, de 2005)
4 Art. 8º (...) §21. As alíquotas da Cofins-Importação de que trata este artigo ficam acrescidas de um ponto percentual na hipótese de importação dos bens classificados na Tipi, aprovada pelo Decreto nº 7.660, de 23 de dezembro de 2011, relacionados no Anexo I da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011.
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*Carlos Macedo Barros é especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil. Advogado no escritório Eliana Calmon Advocacia e Consultoria.