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A ADIn 2446 e o planejamento tributário

Na aludida ADIn, ajuizada pela Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo - CNC, se questiona a constitucionalidade da LC 104/2001, na parte em que acrescentou o parágrafo único ao art. 116 do CTN.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Atualizado às 10:17

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Recentemente, o STF iniciou o julgamento da ADIn 2446, já tendo sido prolatado o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, e de mais quatro outros ministros que acompanharam o seu voto. O processo encontra-se atualmente com vistas ao ministro Ricardo Lewandowski.

Na aludida ADIn, ajuizada pela Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo - CNC, se questiona a constitucionalidade da LC 104/2001, na parte em que acrescentou o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional, assim redigido:

"Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".

Ao longo destes quase vinte anos desde a edição da lei, muito se discutiu a respeito da natureza do aludido parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.

A exposição de motivos da lei, elaborada pelo então ministro da Fazenda Pedro Malan, esclareceu que a norma visava o combate aos procedimentos de planejamento tributário, praticados com abuso de forma ou de direito.

Em razão dessa exposição de motivos, muitos doutrinadores passaram a designar a norma em questão de "norma geral antielisão".

Outra parte da doutrina defendia que a aludida norma, na verdade, visava combater os procedimentos evasivos dos contribuintes, visando dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, tratando-se de norma antievasão, já que não veio impossibilitar a prática do planejamento tributário, considerado como a forma válida de evitar, reduzir ou retardar o pagamento de um tributo antes da ocorrência do seu fato gerador.1

Trata-se de distinguir entre a evasão, considerada ilícita, e a elisão que, apesar de lícita, pode ser neutralizada, caso assim entender o legislador, por meio de normas específicas, editadas caso a caso, ou mediante a edição de uma norma geral, que permite à autoridade, cumpridos certos requisitos, desconsiderar qualquer planejamento tributário que possa ser enquadrado como contrário à norma geral.

Apesar de a ministra Cármen Lúcia ter julgado constitucional a norma, nos parece que o seu voto é um alento para aqueles que defendem a prática do planejamento tributário como uma maneira legítima de minorar a carga tributária dos contribuintes, como demonstraremos a seguir.

Uma primeira questão abordada pela ministra em seu voto é que a plena eficácia da norma depende de lei ordinária para estabelecer os procedimentos a serem seguidos na sua aplicação.

Apesar de duas tentativas nesse sentido, com a edição, primeiramente, da MP 66/2002 e, posteriormente, com a MP 685/2015, o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional pende, ainda hoje, de regulamentação, não podendo ser diretamente aplicado como erroneamente nossos tribunais administrativos tentarem fazer por vezes.

Ficou esclarecido que a aplicação do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional depende da edição de lei ordinária que preveja os procedimentos necessários para sua aplicação e que esta lei ordinária não foi editada até hoje.

Outrossim, a ministra Cármen Lúcia entendeu que para que ocorra a desconsideração autorizada pelo dispositivo, faz-se necessária a configuração do fato gerador que, além de estar devidamente previsto em lei, já tenha se materializado, fazendo nascer a obrigação tributária.

Dessa forma, a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com a intenção de dissimular ou ocultar o fato gerador já ocorrido. A autoridade fiscal está autorizada apenas a aplicar uma hipótese de incidência devidamente estabelecida em lei e que tenha efetivamente sido realizada pelo contribuinte.

Assim, a norma em questão não permitiria à autoridade fiscal tributar fato gerador não ocorrido e não previsto em lei, nem teria introduzido a chamada interpretação econômica no direito tributário brasileiro, não permitindo ao legislador preencher lacunas legais com a interpretação analógica.

Segundo o voto ora analisado, o emprego da analogia não está autorizado para exigência de tributo não previsto em lei, já que o art. 108 do Código Tributário Nacional não foi alterado pela LC 104/2001. O emprego da analogia no Direito Tributário somente está autorizado quando não resulte em exigência de tributo não previsto em lei.

Outra conclusão importantíssima a que chegou a ministra é que a norma não proíbe o planejamento tributário. Não está vedado ao contribuinte buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com o ordenamento jurídico, a economia fiscal, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada.2

Por fim, a ministra faz uma distinção clara entre a elisão fiscal e a evasão fiscal. Na primeira há uma diminuição legítima de tributos, já que o contribuinte evita incorrer na relação jurídica que faria nascer a obrigação tributária, enquanto na segunda o contribuinte age de maneira a ocultar fato gerador materializado para deixar de pagar obrigação tributária devida.

Conclui coerentemente a ministra Cármen Lúcia que o dispositivo em questão é norma de combate à evasão fiscal e não norma antielisão fiscal.

Diante do exposto, concluímos que a decisão foi extremamente favorável aos contribuintes, no sentido de que o voto da ministra Cármen Lúcia reconheceu o direito dos contribuintes de praticar o planejamento tributário, considerado uma forma válida de evitar, reduzir ou retardar o pagamento de um tributo antes da ocorrência do seu fato gerador, vedando ao Fisco a aplicação de tributação mais gravosa por meio do uso da analogia.

Caso prevaleça o entendimento esposado em seu voto pela ministra Cármen Lúcia, o que nos parece muito provável, caberá ao Fisco, para desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, demonstrar que foram realizados com fraude ou simulação, ou seja, de forma ilícita. O parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional trata de "dissimulação", o que remete ao instituto da simulação, como já havia sido apontado por parte da doutrina brasileira. Destarte, não poderá mais a fiscalização utilizar teorias alienígenas, não previstas no ordenamento jurídico opara desconsideração das operações realizadas pelos contribuintes.

Portanto, o voto deixa claro que não se está diante de uma norma geral antielisiva, a qual não pode ser criada a partir da livre interpretação de julgadores administrativos e de manifestações das autoridades fiscais, mas de uma norma antievasão.  

Conclui-se que o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela LC 104/2001, é regra anti-dissimulação, que visa combater atos ou negócios praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária que até o momento não foi editada.

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1 Em artigo por mim escrito à época da aprovação da aludida norma pelo Congresso Nacional , publicado na Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 66, tive oportunidade de escrever o seguinte: "A norma autoriza a autoridade administrativa a desqualificar atos e negócios praticados pelo contribuinte com o intuito de dissimular seja a ocorrência do fato gerador do tributo, seja a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Como redigido o preceito, parece-nos que pretende o legislador combater atos ou negócios fraudulentos praticados pelo contribuinte, com o intuito de dissimular, que significa ocultar, encobrir, fingir ou disfarçar algo. Constata-se que a supra aludida norma visa combater a evasão fiscal, configurada pela prática de atos fraudulentos, e não a elisão fiscal. Contudo, acreditamos que a inovação legislativa não alterou em muito o panorama do nosso direito a respeito do assunto, eis que a prática de atos ou negócios dissimulados com o intuito de burlar o Fisco já era vedada" (Elisão e simulação fiscal. In: Revista Dialética de Direito Tributário no 66, São Paulo, março de 2001, pp. 88 e 89).

2 Como escrevemos no supra aludido artigo (ver nota 1): "Não obstante, apesar desta modificação na legislação tributária, parece-nos que prossegue sendo inquestionável o direito do contribuinte de optar pelo comportamento que gere um gravame menos oneroso do ponto de vista tributário, ou mesmo que não gere nenhum ônus tributário. Com efeito, desde que praticando atos válidos e lícitos, sem dissimulação, o contribuinte organize seus negócios de forma a evitar a ocorrência dos fatos delineados em lei como passíveis de tributação, ou optando pelos atos que lhe acarretem um menor ônus tributário, não há como questionar sua opção. Ou seja, o contribuinte tem o direito de não adentrar no campo de incidência da norma tributária, desde que não prejudique o Fisco ou viole disposição de lei. É intuitivo que ninguém está obrigado a praticar atos ou negócios que provoquem incidências de tributos, ou de tributos mais onerosos. Isto é assegurado pela Lei Maior que confere aos cidadãos a liberdade de fazer qualquer coisa que não seja vedada ou exigida pela lei (art. 5º, II) e que prevê que um dos fundamentos do Estado Brasileiro é a livre iniciativa (art. 1º, IV). Desse direito, constitucionalmente assegurado, e do fato de que a obrigação tributária só pode nascer validamente pela ocorrência efetiva de uma hipótese de incidência prevista em lei (art. 150, I, da Constituição Federal), decorre a legitimidade de o contribuinte planejar suas atividades de forma a evitar ou postergar a prática de atos e negócios inseridos nas hipóteses legais de tributação, ou de maneira a procurar incorrer em situações legais de menor tributação." (op. cit., nota 1, p. 94).

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t*Miguel Delgado Gutierrez é professor convidado do Centro de Extensão Universitária (CEU) - Escola de Direito do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS); Mestre e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP; Especialista em Direito Tributário pelo CEU. Advogado em São Paulo. 

 

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