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Acidente de percurso x Acidente de trajeto: O solipsismo que espanca garantias e os preceitos fundamentais

O objetivo desta articulação é explorar os conceitos específicos de trajeto e percurso, captando as suas diferenças semânticas e jurídicas, com o fim de entender o acerto desta e de outras decisões, cujo fato que gerou o fundamento jurídico do pedido seja a este semelhante.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Atualizado às 11:41

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O input para o início desta articulação decorreu de um caso concreto, onde a confusão conceitual dos institutos levou a condenação do ex-empregador ao pagamento de uma indenização milionária a um ex-empregado, que sofreu um acidente no trajeto, causado por terceiros, quando ia do local onde desenvolvia as suas atividades profissionais em direção à sua residência.

Nos autos da ação trabalhista narrou o ex-empregado que, diariamente, se deslocava da sua casa para o local de trabalho utilizando veículo próprio. Neste trânsito espacial, em determinado dia, ao deixar o local de trabalho em direção à sua residência, fez uma parada em um posto de gasolina com o fim de abastecer e limpar o para-brisa do veículo.

Continua afirmando que, enquanto aguardava fora do carro o abastecimento e a limpeza do para-brisa, foi atropelado por veículo dirigido por terceiro, após o seu condutor pisar no acelerador de forma não intencional e avançar em sua direção. Tal acidente, teria lhe ocasionado diversas fraturas na tíbia, passando por uma cirurgia ortopédica.

Uma das pretensões subjetivas deduzidas e de natureza declaratória foi o reconhecimento do acidente havido como sendo de trabalho, nos termos da legislação. Quando o julgamento em primeira instância, os pedidos foram parcialmente procedentes para acolher essa pretensão específica, nos termos do artigo 21, IV, "d", da lei 8.213/91.

Em segunda instância, por ocasião de interposição de recurso próprio, os termos da inicial pretensão subjetiva declaratória foi substituída por outra de igual teor, com a seguinte fundamentação jurídica:

"Registra-se que o fato de o reclamante ter parado para lavar e abastecer o carro antes de seu retorno para casa não caracteriza que ele tenha saído do caminho habitualmente percorrido para casa.

Nos termos do art. 21, caput, e inciso IV, alínea "d", da Lei nº 8.213/1991, equipara-se ao acidente do trabalho, apenas para fins previdenciários, o acidente de trajeto, ou acidente in itinere, sofrido pelo empregado, ainda que fora do local e do horário de trabalho, no percurso da residência para o local da prestação de serviços ou vice-versa." (g.n.)

Pois bem. O objetivo desta articulação é explorar os conceitos específicos de trajeto e percurso, captando as suas diferenças semânticas e jurídicas, com o fim de entender o acerto desta e de outras decisões, cujo fato que gerou o fundamento jurídico do pedido seja a este semelhante.

Havendo dispositivo legal que equipara acidente do trabalho ao acidente de percurso, o exame da temática prescinde à sua análise. Segundo dicção legal, equipara-se a acidente do trabalho, nos termos do artigo 21, IV da lei 8.213/91 aquele que, ainda que ocorrido fora do local e horário de trabalho, tenha se dado no percurso entre a residência e o local de trabalho do empregado (vice e versa), verbis:

"Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:

[...]

IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:

[...]

d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado. (g.n.)

Por "percurso", entende-se deslocamento e, portanto, movimento, ato de se deslocar. Segundo dicionário Michaelis1 a palavra percurso é entendida como: a) Ação ou efeito de percorrer; b) espaço percorrido; c) movimento num determinado espaço. Já o dicionário Priberam2 a palavra percurso é entendida como a) ação ou efeito de percorrer; b) Caminho, giro.

Assim, temos que percurso é ação ou ato de percorrer; é movimento por determinado espaço. O significado e entendimento da palavra percorrer induz, necessariamente, um movimento, uma ação, um ato de caminhar, andarilhar, circular, correr, transitar indicando, finalmente, qualquer ato de sair ou estar fora da inércia. Veja que a própria legislação impõe a sua existência a um movimento quando afirma: "qualquer que seja o meio de locomoção." Só se o tem, portanto, quando se há movimento.

Já por trajeto, entende-se a distância, o espaço que precisa ser percorrido para se chegar de um lugar ao outro. Segundo o dicionário Houaiss3, trajeto é o espaço a percorrer de um ponto a outro. Já o dicionário da Língua Portuguesa de Evanildo Bechara4, entende trajeto como sendo o itinerário a percorrer.

Parece, portanto, ainda que de uma rasa e breve leitura, que os conceitos e significados das palavras percurso e trajeto se diferenciam. O percurso tem significado mais objetivo, ou seja, de ação; de movimento; de ausência de inércia. Já o trajeto, tem um significado mais subjetivo, ou seja, de espaço; de distância entre dois pontos.

É de evidência, portanto, que o percurso, ou seja, o ato ou ação de percorrer, caminhar, andarilhar, circular, correr ou transitar ocorre dentro de um trajeto, ou seja, quando se pretende ir de um ponto a outro. Mal comparando, é como se o trajeto fosse gênero onde percurso é a espécie; como se o trajeto fosse a moral e o percurso o direito; como se o trajeto fosse o citoplasma de uma célula e o percurso o núcleo.

Tentando por uma pá de cal na diferenciação semântica dos significados dos institutos e palavras analisadas, é possível concluir que não há percurso sem trajeto pois, do contrário, teríamos a ação do movimento sem destino, sem o porquê. Todavia, pode haver trajeto sem percurso, uma vez que o espaço ou distância entre dois pontos pode existir, sem que haja percurso, ou seja, a ação de ir de um ponto a outro.

Não obstante tenha se tornado comum referir-se ao acidente de percurso como acidente de trajeto, ignorando frequentemente as diferenças conceituais, é certo que um não se confunde com o outro, não sendo possível o reconhecimento do acidente de trabalho, num trajeto, pela equiparação ao acidente de percurso.

Explorados esses conceitos, o próximo passo é entender qual diferenciação haveria entre um e outro no caso específico. Também no caso concreto, se haveria possibilidade de alteração do resultado do processo que resolveu a lide, com a condenação da ex empregadora a indenizar o empregado por acidente de percurso quando se poderia estar num acidente de trajeto.

No caso sub examem restou reconhecido o acidente de percurso, utilizando o fundamento legal respectivo, apesar de incontroverso que o acidente ocorreu em um posto de gasolina, enquanto o ex-empregado aguardava fora do seu veículo, a consecução de uma prestação dos serviços do referido estabelecimento comercial (abastecimento e limpeza do para-brisas), ou seja, no trajeto.

No processo, que envolve esta situação de fato, não se poderia reconhecer e equiparar o lamentável acidente ocorrido com o ex-empregado como sendo acidente do trabalho. E, de tantos motivos, destacamos alguns.

O primeiro tem relação com a inércia. No momento em que o ex-empregado sofreu o lamentável acidente ele não estava em percurso, ou seja, em ação, andando, se movimento, no ato de percorrer, mas parado; inerte. Situação semelhante seria de um empregado que, no percurso trabalho x casa decide parar num restaurante, num bar, numa igreja, farmácia, supermercado, na casa de alguém, ou seja, parar.

Essa parada até pode integrar um dos muitos trajetos que existam entre o seu trabalho e a sua residência (distância entre dois pontos) mas, no momento em que ele para, para que fim for, ele finaliza o conceito de percurso, porque se impõe em inércia.

O primeiro requisito para o enquadramento da hipótese como sendo acidente de percurso e não de trajeto é a inércia.

O segundo, que termina por decorrer do primeiro é a interrupção do percurso, ainda que dentro de eventual trajeto, para executar atividades quaisquer, fora do objetivo "ir para casa".

O espírito da legislação é proteger o empregado que sai de sua residência para o seu trabalho e vice-versa. Como anteriormente exposto, a própria legislação específica equipara a acidente do trabalho aquela ocorrido ainda que fora do local de trabalho no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, o que dá a ideia de que ele esteja em movimento, em curso, no percurso, no meio de locomoção. Outra interpretação, é solipsismo.

Ocorreria de forma diferente se o empregado, no caminho do trabalho para a sua residência, dentro de seu carro, ou seja, no caminho, andando, em movimento, em ação de ir para casa), fosse abalroado por outro veículo seja numa via expressa em movimento, seja numa via expressa parado (num sinal de trânsito, por exemplo).

Neste último caso, o acidente ocorreria no percurso, ou seja, na ação de ir para casa, ainda que parado num sinal e, por isso, há permissão legal para que seja equiparado e enquadrado como acidente de percurso.

Também, se o empregado que utiliza dois ou três transportes públicos estiver deixado um deles e, no caminho, aguardando outro chegar (parado num ponto). Caso o empregado saia do percurso, mesmo estando num dos trajetos, seja para ir à uma loja, um cabeleireiro, seja para jantar num restaurante e sofre algum infortúnio, já sai do enquadramento legal que objetiva equiparar ao acidente do trabalho.

No caso em estudo, o acórdão Regional, assim como algumas jurisprudências, entendem ser situações semelhantes acidente de trajeto e acidente de percurso. Contudo, o empregado que para, com o fim de resolver um problema ou fazer o que lhe convém, não pode "sair do caminho habitualmente percorrido para a sua casa". Ora! Partindo desta criada e marginal interpretação de um dispositivo legal, percurso é o que o empregado faz, cotidianamente, no trajeto casa x trabalho x casa, mesmo que saia mais cedo e vá a academia, ou deixe ou pegue filho na escola, por exemplo?

Não é possível criar precedentes dos quais a empresa é condenada, em qualquer circunstância após a saída ou antes da chegada do empregado do local de trabalho, a indenizar-lhe em hipótese de eventualidades como a ocorrência de um acidente. Esse entendimento esbarra numa imparcialidade normativa, já que impõe situação à margem dos enquadramentos da lei. É impor ao empregador um dever de impedir que o empregado tenha a liberdade de fazer o que quiser, antes ou após ao término de suas atividades laborais. É impor uma responsabilidade ao empregador sem que haja ação de lesão por ele (porque não há amparo legal). É, finalmente, violar a garantia constitucional individual de ir e vir.

Noutras palavras, ao equiparar o fato havido (acidente no trajeto) a acidente do trabalho, por uma confusão conceitual e de hipóteses distintas a sentença, corroborada pelo acórdão do Tribunal Regional, terminaram as decisões por impor ao empregador uma responsabilidade que não possui amparo legal, porque não adequada ao rol taxativo de requisitos de que trata o artigo 21, IV da lei 8.213/91.

Em relação aos critérios legais de interpretação de normas, no entanto, não para por aí.

O solipsismo comum e cotidiano do judiciário, que causa imensurável insegurança jurídica faz renascer, a cada dia, a necessidade de um processo mais garantista, ou seja, de um processo justo. Esta ideia termina por espancar julgamentos ideológicos, parciais e partiais, obrigando ao magistrado um exercício intenso para que a garantia constitucional da imparcialidade seja posta em prática.

Em relação a forma de interpretação das leis e os abusos, autoritarismos e ditatorialismos que podem dela advir, Eduardo José Fonseca da Costa5 afirma que, o processo existe para proteger as partes dos abusos do juiz. Neste sentido, nos auxilia:

"Daí existirem, pelo menos, cinco tipos de dever de (esforço por) imparcialidade ou neutralidade judicial: [...] d) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE PROCEDIMENTAL [dever do juiz de se constranger pela rigidez procedimental instituída na lei, ainda que não lhe pareça a mais adequada às particularidades do caso concreto e à natureza da relação jurídica de direito material controvertida]; e) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE NORMATIVA [dever do juiz de se constranger pelas normas jurídicas aplicáveis ao caso, ainda que no íntimo lhe pareçam injustas ou mal editadas] (o que, num estado constitucional de direito democrático, decorre da separação de poderes)."

Nesta esteira, criar interpretação diversa, em exercício solipsista, à edição semântica de determinado dispositivo legal fere, frontalmente, a garantia constitucional da legalidade, da imparcialidade, da segurança jurídica e do devido processo legal.

Em conclusão, por um descuidado erro de conceito e enquadramento das situações fáticas à hipótese legais de acidente do trabalho, terminou-se por reconhecer um acidente de trajeto como sendo de percurso, mesmo estando o empregado fora deste, porque inerte, parado, para atender a algo seu, pessoal, sem relação com a sua volta ao trabalho, elastecendo as hipóteses legais à outras marginais, num verdadeiro exercício se solipsismo, violando garantias constitucionais e jurisdicionais deixando a parte à mercê de acesso à justiça estendendo esta, como um ingresso e uma estada a ordem jurídica justa.

Cabem às partes no processo, porque jurisdicionados, assim como aos advogados, porque indispensáveis à administração da justiça lutar sempre, para a manutenção da ordem jurídica justa sem que ocorram, ainda que por despercebimento, violação às garantias constitucionais do processo, aos seus princípios jurisdicionais e, finalmente aos seus preceitos fundamentais, evitando que equívocos, decisões desacertadas, fora dos conceitos e das hipóteses e limites legais se tornem um milionário valor de injustiça.

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1 Clique aqui. Acessado em 17/8/20.

2 Clique aquiAcessado em 17/8/20.

3 Clique aquiAcessado em 17/8/20.

4 Clique aquiAcessado em 17/8/20.

5 COSTA. Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério. Rio de Janeiro: Juspodivm, p. 67, 2020.

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t*Richelle Zabaleta é advogada do Kincaid | Mendes Vianna Advogados. Possui prática e experiência em Direito e Processo do Trabalho.




t*Luiz Calixto Sandes é advogado Trabalhista. Sócio regional no Estado de São Paulo do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados. Mestre em Direito. Professor universitário.


 

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