Aborto proveniente de estupro: Alterações
A intenção contida na portaria de oferecer à mulher a opção de gerar o filho, não vai de forma alguma espelhar o desejo íntimo que ronda sua tormentosa decisão.
domingo, 6 de setembro de 2020
Atualizado em 7 de setembro de 2020 08:18
As modalidades de procedimento de interrupção de gravidez nos casos de aborto proveniente de estupro e para salvar a vida da gestante sempre estiveram presentes no Código Penal. A outra causa de licitude, embora não esteja contemplada ainda no estatuto repressivo, foi autorizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, permitindo o procedimento quando se tratar de feto anencefálico. Referida exclusão de crime já foi inserida no Anteprojeto do Código Penal, no artigo 128, III.
Ao longo dos anos muitas mudanças foram introduzidas na legislação penal, correspondente à realização do abortamento legal. A lei 12.845/13, por exemplo, que regulamentou as normas protetivas à mulher em caso de violência sexual, entendida essa como qualquer prática de atividade sexual não consentida, e dentre elas o tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes do ato, compreendendo até mesmo a profilaxia da gravidez, termo equivocado, pois gravidez não é doença. A mens legis trata desde a oferta de contraceptivos de emergência conhecidos como "pílula do dia seguinte" até as informações a respeito do direito de optar pelo aborto, em caso de gravidez. É bom que se diga que a medida já vinha sendo praticada como recomendação do Ministério da Saúde, por meio dos documentos "Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" e "Atenção Humanizada ao Abortamento", ambos publicados em 2005, quando foi normatizado o procedimento.
Posteriormente foi editada a portaria 1.508/GM/MS/2005 regulamentando o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, deixando bem claro que a manifestação de vontade da gestante era a peça fulcral de todo o procedimento, não se exigindo qualquer tipo de autorização judicial para sua realização e nem mesmo comunicação à autoridade policial.
Ocorre que as últimas ferramentas legais ditam novas regras. A lei 13.718/18 estabelece que, nos crimes contra a liberdade sexual e nos crimes sexuais contra vulnerável, a ação penal será pública incondicionada, isto é, independentemente da vontade da vítima em querer ou não ajuizar a ação penal, está será intentada pelo Ministério Público, se presentes as condições.
A lei 13.931/19 determina a notificação compulsória no prazo de 24 horas à autoridade policial de casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados, para as providências cabíveis e fins estatísticos.
A recente portaria 2282 do Ministério da Saúde, de agosto de 2020, estabelece a obrigatoriedade da comunicação à autoridade policial por parte do médico e demais profissionais de saúde, assim como dos responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente nos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. E mais. Referidos profissionais devem preservar todo material coletado quando do atendimento da vítima, inclusive fragmentos do embrião ou feto para a posterior realização de confrontos genéticos visando à elucidação do estuprador. Assim como, no Relato Circunstanciado, primeira peça do procedimento, deverá constar o local, dia e hora aproximada do fato; tipo e forma de violência; descrição dos agentes da conduta, se possível, identificação de testemunhas, se houver. Tais normas revogam, desta forma, a portaria MS/GM 1508/2005.
O Código Penal, por sua vez, quando permite o aborto em caso de estupro, não estabelece nenhuma exigência com relação ao procedimento, a não ser o consentimento da gestante ou de seu representante legal. É regra hermenêutica que, quando a lei silencia a respeito de determinada condição, não cabe ao intérprete construir hipóteses outras que venham a contrariar o conteúdo normativo disciplinado. Onde a lei não distingue não cabe ao intérprete fazer distinções.
É de se observar que o abortamento nas hipóteses legais se configura um direito já consagrado e seu exercício não pode trazer constrangimento para a gestante, assim como restringir seu campo de autonomia. Tem-se a impressão de que as novas exigências pretendem dificultar ao máximo a tomada de decisão da gestante para que, em razão das dificuldades apresentadas, possa desistir de seu intento inicial. Além de transformar o profissional de saúde em agente persecutório penal.
A intenção contida na portaria de oferecer à mulher a opção de gerar o filho, não vai de forma alguma espelhar o desejo íntimo que ronda sua tormentosa decisão. Trata-se de caso de gravidez proveniente de estupro - relação sexual mediante violência ou grave ameaça - e a spes vitae que carrega consigo não representa seu compartilhamento de vontade e sim um trauma que irá carregar pelo resto da vida. Outro - de igual proporção psicológica - será levar a gravidez a termo e entregar o filho para adoção.
Antevendo o terreno movediço em tema tão incandescente pela sua própria natureza, envolvendo não só o pensamento jurídico, como também interesses da área da saúde, grupos partidários e refratários à proposta, opção religiosa e demais tendências, reacendem os debates encobertos pelas cinzas das recentes discussões - como o caso da menina estuprada e que interrompeu a gravidez com 10 anos de idade - provocam reações de todas as ordens, com inúmeros desdobramentos. Tanto é que um grupo de deputadas federais pretende sustar tal Portaria, por entender que as exigências impostas provocarão um normal afastamento das mulheres dos serviços públicos e confiáveis da saúde, optando por práticas não recomendáveis e realizadas ao arrepio da lei, geralmente com sequelas funestas.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.