Primeiras reflexões sobre o Direito de Arena e a MP 984/20
O Direito de Arena sempre pertenceu aos clubes e não aos atletas.
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Atualizado às 14:05
A MP 984, de 18 de junho de 2020, trouxe modificações na lei 9.615/98, as quais vêm rendendo acaloradas discussões nos meios jurídico-desportivos.
Não pretendo aqui examinar os aspectos constitucionais da MP 984/20, nem sobre as consequências da previsão de ampliação de mídias que poderão transmitir partidas de futebol, pelo menos no período de vigência dessa norma.
Estas reflexões se prenderão apenas no aspecto trabalhista relativo ao Direito de Arena, já que fui o primeiro a lançar luzes sobre esse tema, do ponto de vista do Direito do Trabalho, uma vez que antes de 1998, somente os civilistas é que se dedicavam ao estudo desse instituto.
Tive a ousadia de em 1997, após um ano e meio de pesquisas, concluir em tese de doutorado por mim defendida junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que o valor pago a título de Direito de Arena tinha natureza jurídica remuneratória, equiparando-o às gorjetas, se lhe aplicando a previsão do, na época enunciado 354, do TST, hoje súmula de mesmo número.
Tal tese, que a bem da verdade, tinha apenas o intuito de obter o grau de doutor, acabou por ser adotada pela Justiça do Trabalho, em incontáveis julgados prolatados pelas varas, tribunais e pelo TST.
A partir do momento que o Judiciário adotou tal posicionamento, passou-se a discutir a validade da redução do valor então previsto na lei que era de 20% para 5%, da parte relativa aos atletas, fruto de um acordo celebrado por entidades patronais e de atletas, homologado pela Justiça Comum do Rio de Janeiro.
Os muitos casos que foram levados à Justiça do Trabalho com essa questão, em massacrante maioria foram julgados desprezando a validade da avença aqui noticiada, determinaram o pagamento da diferença entre os 5% e os 20%, e, ainda, reconheceram a natureza jurídica de remuneração de tal verba.
Em 2011, o art. 42 da lei 9.615/98 sofreu alteração, reduzindo o percentual de 20% para 5%, e mais, retirou a natureza remuneratória do Direito de Arena pago aos atletas, declarando-o como de natureza civil:
Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o Direito de Arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.
§ 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.
Posicionei-me contra a alteração supra, por entender se tratar de exemplo típico de retrocesso social tal mudança, pois reduz um ganho de natureza alimentar de quase 40 anos; fere o princípio da irredutibilidade salarial previsto na Constituição da República e por fim, por lei modifica a natureza jurídica de um instituto. Tais insurgências externei em congressos, aulas e nas duas últimas edições de meu livro "Os atletas profissionais de futebol no Direito do Trabalho", publicado pela Editora LTr, (edições de 2015 e 2018).
Agora, nova alteração ocorre no mesmo dispositivo legal, por força da MP 984/20:
Art. 42. Pertence à entidade de prática desportiva mandante o Direito de Arena sobre o espetáculo desportivo, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.
§ 1º Serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo de que trata o caput, cinco por cento da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.
A pretensão destas reflexões é quanto ao aspecto relativo ao pagamento aos atletas.
Continuo entendendo que as alterações de 2011, e ainda mantidas, padecem das mesmas impropriedades acima citadas.
Mas, independentemente de se discutir sobre a validade da redução do percentual devido aos atletas ou modificação por lei da natureza jurídica do instituto, trago neste trabalho algumas inquietações sobre as recentes alterações.
Vejamos. A lei afirma que o Direito de Arena pertence ao clube mandante, e por razões históricas este detém a prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.
Muito mais abrangente o texto legal do que as redações que vinham desde o longínquo ano de 1973, quando a lei 5.988 assim definiu o Direito de Arena e seu alcance:
Art. 100. A entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos de espetáculo desportivo público, com entrada paga.
Parágrafo único. Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.
O texto acima praticamente foi copiado pelas normas que surgiram depois.
A lei Zico (lei 8.672/93). Assim prescrevia:
Art. 24. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de autorizar a fixação, transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo desportivo de que participem.
§ 1º Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.
A primeira publicação da lei Pelé assim se pronunciava:
Art. 42. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem.
§ 1o Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento.
Resta claro o avanço legislativo, pois contempla um novo mundo, o da era digital, e nesta parte deve-se tecer loas á MP 894/20.
Uma rápida explicação histórica se faz necessária.
O Direito de Arena surge como forma de se indenizar os clubes pelo fato de que as transmissões pela televisão e hoje por outros meios, retiram público dos estádios.
O Direito de Arena num primeiro momento, por se tratar de tema novo, recebeu longa meditação por parte de juristas, destacando-se o professor Antônio Chaves, que o caracterizou como um direito conexo ao Direito Autoral, por estar entrelaçado aos direitos de autor, contíguo, mas distinto do mesmo.
As transmissões ao vivo pela televisão retiravam o público dos estádios, e como a renda das bilheterias eram a maior fonte de ganho dos clubes, surge o Direito de Arena, como forma de compensar a perda de renda.
Foi uma batalha de quase uma década para se criar a lei dos Direitos Autorais, pois era um tema que gerava muita discordância, e para complicar mais, incluiu-se o Direito de Arena na mesma.
O Direito de Arena sempre pertenceu aos clubes e não aos atletas. Estes já têm remunerado o uso de sua imagem durante as partidas pelo próprio salário, pois o contrato de trabalho de atleta se aperfeiçoa com a exibição do jogador ao público.
Foi opção do legislador durante toda a evolução legislativa acima, conceder uma parte dos ganhos auferidos pelos clubes com o Direito de Arena aos atletas, apenas isso, até porque a imagem coletiva é do clube, este sim é que perde renda com as transmissões ao vivo pela televisão, sendo que o atleta tem garantido seu salário, já que quem assume os riscos da atividade econômica é o empregador (art.2º, da CLT).
Com a redação atual, o Direito de Arena pode ser cedido pelos clubes a qualquer mídia de comunicação, não só televisão, o que, como já afirmado, atende à modernidade, pois hoje a televisão perde para outros meios visuais de comunicação, como Youtube e Netflix. Além desse fato, os clubes poderão transmitir suas partidas por meios próprios, em plataformas de streaming, o que, aliás, já vem acontecendo.
Bem, sendo cedido o direito de transmissão a terceiros, o clube poderá fazê-lo cobrando ou não pela autorização, pois, como esclarecido, esse direito pertence às entidades de prática desportiva e não aos atletas.
Outra novidade é a que afirma que o Direito de Arena pertence ao clube mandante, rompendo com o sistema até então vigente de praticamente monopolizar numa só empresa de televisão a autorização para a transmissão das partidas.
Agora, o Direito de Arena pertence ao clube mandante, e este terá de destinar 5% para os atletas que participarem das partidas.
Criou-se uma situação que vai causar dúvidas, ou seja, se apenas o clube mandante receberá por autorizar a transmissão das partidas e a lei determina que destine 5% para os atletas participantes, esta divisão alcança apenas os atletas do clube mandante ou aos da equipe adversaria também?
Pois é, o que fazer? Vamos lá. O Direito de Arena foi criado para indenizar a perda de renda pelos clubes em razão da transmissão tirar público dos estádios, e optou o legislador desde o início em destinar parte desses ganhos aos atletas.
Logo, entendo que a novel legislação está correta nesse ponto, pois qual clube perderia renda com a transmissão pela televisão da partida? A resposta é o mandante e não o visitante!
Problema a ser resolvido é a destinação da parte cabível aos atletas, pois a lei diz que será dividida aos atletas que participarem do jogo.
Após meditar sobre esse ponto, e mesmo sujeito a mudar de ideia, neste momento minha conclusão é no sentido de que o valor a ser pago aos atletas será somente aos do clube mandante, pois não me parece razoável um clube discutir um valor com uma empresa de comunicação, e destinar uma parte dos ganhos aos empregados da outra.
Ora, o clube venderá seu produto conforme as leis do mercado. Um clube com milhões de torcedores venderá seus direitos de transmissão por um valor bem maior do que aquele que tenha somente poucos milhares de torcedores.
E mais. Num campeonato como o brasileiro, o qual tem 38 rodadas, os clubes jogarão 19 partidas como mandantes, ou seja, todos os atletas receberão por 19 partidas e não por 38, o que seria, com as necessárias vênias aos que pensam de outra forma, um absurdo, pois os atletas de um clube receberiam trinta e oito vezes sua parte de Direito de Arena, e o clube empregador dezenove!
Adotando-se a tese de que existe ainda a natureza remuneratória do referido pagamento, seria algo muito estranho, para dizer o mínimo, o clube visitante ter de pagar os reflexos trabalhistas sobre um pagamento que vem de um outro clube.
Pode-se afirmar que os atletas de clubes menores serão prejudicados, mas esse argumento não nos parece razoável, pois o trabalhador comum também recebe salários menores conforme ele trabalhe para empresas menores ou maiores. Um exemplo é o vendedor de um produto muito apreciado pelo público e outro que vende um similar que tem pouco apelo de mercado. Não se pode igualar os recebimentos. Imagine-se quem vende Coca-Cola e quem vende Pepsi-Cola, aquela vende mais.
Enfim, são como o título deste ensaio afirma, minhas primeiras reflexões sobre o assunto.
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*Domingos Sávio Zainaghi é mestre e doutor em Direito do Trabalho. Pós-doutorado em Direito do Trabalho. Pós-graduado em Comunicação Jornalística. Membro da Academia Paulista de Direito e da Academia Nacional de Direito Desportivo. Presidente honorário da Asociación Iberoamericana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social e do Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo. Coordenador nacional da área de Direito do Trabalho da ENA, do Conselho Nacional da OAB. Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Membro do IBDD - Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro do Instituto de Direito Social-Cesarino Jr. Advogado.