Reflexões acerca da inviolabilidade da intimidade do lar
É inequívoco que o ato de obter imagem que viola o princípio da intimidade a partir da intromissão de terceiro no interior do lar, caracteriza intromissão externa que fere valor fundamental, ilicitude majorada em razão da indevida divulgação das imagens.
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Atualizado às 08:05
Neste contexto pandêmico em que as pessoas têm passado mais tempo dentro de suas casas, o jornal Folha de São Paulo, na data de 19/8/20, na coluna COTIDIANO, relata que vizinhos captaram a imagem de uma professora nua em seu apartamento e a divulgaram em redes sociais. A pessoa fotografada disse que, "estamos em período de isolamento, eu tomo sol e ando na minha casa de forma que eu quiser e que se sentiu constrangida ao descobrir que imagens suas em diferentes momentos circularam em grupos de WhatsApp". Concluiu em seu depoimento: "me senti mal, exposta, envergonhada. Não estou fazendo nada errado, nada que tenha a ver com ninguém". Para formalizar sua indignação registrou queixa no 23º Distrito Policial em São Paulo e divulgou o inteiro teor de tipos penais. Além deste fato, contratou advogada que aduziu: "a professora não estava expondo a sua nudez em espaço público e que ela foi fotografada por pessoas que, para verem o que estava acontecendo, precisavam estar ali bisbilhotando." As imagens foram captadas por pessoas que residem em prédios próximos ao do local em que foram obtidas. Diante do fato, resta indagar se ocorreu violação da intimidade da professora, dando ensejo ao pleito de reparação por danos morais.
O fato de captar a imagem de uma pessoa desnudada e expô-la à visualização nas redes sociais, sem a expressa autorização do seu titular, revela uma indiscutível violação de direito fundamental. Isto porque, a intimidade abrange um direito da pessoa se isolar do público e permanecer em seu "espaço reservado". Ao captar a imagem do interior da residência da pessoa, o ofensor incorreu em invasão da casa, que "é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador...", segundo prescreve o artigo 5º, inciso XI da CF/88. De igual forma, possui eficácia imediata e horizontal o art. 5º, X, da CF, segundo o qual "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Portanto, a nenhuma pessoa é permitido penetrar na casa de outrem sem a expressa autorização do seu titular - embora a invasão, por parte do ofensor, não tenha sido física, não deixa de ter sido ilícita.
Por conseguinte, é inequívoco que a captação de imagens do interior do lar sem autorização do proprietário viola o princípio da intimidade, caracterizando intromissão externa que fere valor fundamental, ilicitude majorada em razão da indevida divulgação das imagens. Por sua vez, o titular da imagem possui proteção especial sobre seu retrato ou corpo físico, nos termos dos artigos 2º, inciso IV e 17 da lei 13.709 de 14/8/18 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Neste caso, caberá ao titular do direito fundamental violado promover ação indenizatória em face do ofensor, nos termos prescritos pelos artigos 21, 186 e 927 do Código Civil.
A divulgação das imagens íntimas da professora de São Paulo se assemelha, com as devidas proporções, à "pornografia da vingança" (ou revenge porn), fenômeno que retrata situações em que, durante um relacionamento amoroso (seja um namoro, noivado ou casamento), uma pessoa tem acesso às fotos íntimas de seu(sua) parceiro(a), dolosamente divulgando tais imagens em razão do término da relação, com o intuito deliberado de infligir máculas à honra. Ambas são práticas não consentidas de divulgação da imagem, em que, por evidente, não há qualquer autorização da vítima para sua exposição. O papel de vítima, aliás, não pode jamais ser relativizado sob qualquer enfoque, ainda que, na origem, a pessoa tenha se deixado fotografar - a voluntariedade no ato da fotografia não implica em anuência com a ampla e irrestrita divulgação das imagens, com enorme potencial vexatório.
A sociedade sempre foi implacável no julgamento dos erros humanos, esquecendo-se de avaliar em primeiro plano as próprias falhas. Nessas situações, subtrai-se da vítima o direito à ampla defesa e ao contraditório. Tal situação mostra-se especialmente sensível em um contexto em que qualquer cidadão pode viralizar suas opiniões e imagens em escala exponencial através das redes sociais - não raro, os julgamentos públicos sem qualquer direito ao contraditório resultam em uma cultura nefasta do "cancelamento", em que predominam os linchamentos virtuais, com o condão de deixar marcas profundas na personalidade. Nada mais justo que a vítima, em tal hipótese, busque a reparação, competindo ao Judiciário arbitrar valores que sejam compatíveis com o enorme grau de culpabilidade dos ofensores em situações semelhantes.
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*Clayton Reis é pós-doutor em Responsabilidade Civil pela Universidade de Lisboa. Mestre e doutor em Direito das Relações Sociais. Professor universitário e advogado do escritório Reis & Alberge Advogados.