14 anos de proteção à mulher: o Direito que acolhe
O Direito Internacional como ferramenta a complementar a efetivação do Direito Brasileiro e a Proteção da Mulher. A Lei Maria da Penha, o Direito Internacional e a dualidade de uma legislação que abraça a vítima pelos dispositivos do Direito Civil e pune o violentador com a força do Direito Penal. A possibilidade da prisão preventiva do agressor. O crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Atualizado às 14:13
De um fato cruel e seu resultado o Direito instrumentalizou a legislação mais plena que lhe fosse possível1, não sem outros sofrimentos decorrentes do primeiro ato violento. Falamos aqui do ano de 1983, quando, no mês de maio, Maria da Penha foi atingida por um disparo de arma de fogo do marido, que teria alegado que roubadores invadiram a casa e atirado contra sua esposa. Não bastasse isso, outras tantas violências Maria da Penha sofrera do marido por muitos anos, entretanto, pouco resultado teve quando buscou o amparo estatal. Em verdade Maria da Penha fora vítima de duas tentativas de homicídio nos anos 1980, em uma dessas a violência a deixou paraplégica.
Após a segunda tentativa de homicídio, o violentador foi julgado pelo Tribunal do Júri que o sentenciou a 15 anos de prisão, porém respondendo em liberdade até a realização de um novo júri em razão dos recursos, o que ocorreu em 1996 com a confirmação da condenação, mas com pena menor, entretanto, por vícios processuais apontados pela Defesa a sentença resultou no cumprimento de apenas dois anos de prisão2.
Em razão da impunidade evidente, em 1998 Maria da Penha buscou no Direito Internacional a concretização dos seus direitos com o protocolo de denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos, que recebia a primeira denúncia de violência doméstica já dentro do escopo trazido pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994, ironicamente assinada no Brasil, em Belém do Pará, que deu o nome à convenção. No ano de 2001 a CIDH publica seu entendimento sobre as violações que Maria da Penha Maia Fernandes sofrera pelo marido e responsabiliza o Brasil pela omissão, negligência e tolerância com os atos de violência, especialmente pela inobservância da Convenção de Belém do Pará, impondo recomendações ao país para efetivar aquela Convenção, sendo fundamental a elaboração de uma lei nacional3.
Por mais que parecesse algo inédito ao Direito Brasileiro, nada mais era do que a transposição dos compromissos brasileiros assumidos internacionalmente ao ordenamento pátrio, como a Conferência de Belém do Pará, o próprio Pacto de San José da Costa Rica e as Conferências da Mulher que consideraram os direitos sexuais e reprodutivos como decorrência natural dos Direitos Humanos4. Ainda assim a sociedade civil, com destaque a ONGs de defesa da Mulher, teve que travar uma batalha para a redação de um projeto de lei junto à Secretaria Especial de Política para as mulheres que apresentou ao Congresso Nacional o PL 4.559 de 2004, que aprovado, foi sancionado no dia 07 de agosto de 2006.
Do constrangimento internacional após a divulgação do caso no exterior e a condenação do país em um organismo estrangeiro, nascia a legislação que recebeu a alcunha de Lei Maria da Penha, cumprindo a previsão do artigo 226, §8º, da Constituição Federal e concretizando o disposto no art. 1.º, III, o fundamento da Dignidade da Pessoa Humana.
A abrangência da lei surpreende pois além de definir as formas de violência que podem acometer as vítimas, quais sejam, a violência física, psicológica, patrimonial, sexual e moral, matéria de natureza acima de tudo penal, apresenta um grande conjunto de instrumentos para a proteção da mulher como assuntos de matéria típica de Direito Administrativo como a criação de locais públicos para o atendimento especializado às vítimas de violência doméstica como delegacias, hospitais, a capacitação das forças de segurança pública e a previsão recente de ressarcimento dos custos do Sistema Único de Saúde empregados à vítima e causados pelo agressor conforme o artigo 9º, §4º, resultante da mudança legislativa de 2019 (Lei nº 13.871).
Com sua competência cível e criminal resguardada nos artigos 13 e 14, a inovação das últimas reformas deve ser de especial atenção aos advogados que atuam nas esferas penal ou do Direito de Família, qual seja, a previsão no artigo 14-A que possibilita a realização do divórcio ou da dissolução da união estável nos Juizados ou Varas de Violência Doméstica e Familiar, ao que ressaltamos não ter o poder de substituir o foro cível para decidir a partilha de bens (14-A, §1º). Ou seja, o legislador aqui buscou agilizar e evitar maiores tensões ao possibilitar a realização de uma espécie de "cautelar" de divórcio ou dissolução nos foros de Violência Doméstica, mitigando a forçosa iniquidade sobre a vítima que precisava percorrer outra travessia para reconhecer o insustentável vínculo de afeto com o agressor quando já dado o êxodo de seu lar.
Antes de citarmos a amplitude penal da lei, deve-se destacar que mais do que impressionante, é de especial sinal de abraço e acolhida a previsão do mesmo artigo 9º, §2º, II, ao prever norma de Direito do Trabalho ao dispor que a Justiça deverá assegurar "a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses", demonstrando o alcance que a lei busca ter aos mais diversos aspectos da vida da mulher vítima de violência de gênero.
Já na esfera penal, prontamente destacamos a possibilidade da prisão preventiva do agressor para a garantia e efetividade do cumprimento das medidas protetivas de urgência, conforme disposto no inciso III do artigo 313 do Código de Processo Penal, inserido originalmente pelo artigo 42 da Lei Maria da Penha, in verbis:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (grifos nossos)
Com efeito, o referido dispositivo é, sem dúvida, uma importante ferramenta de proteção àquelas mulheres que conseguem sair de uma situação de violência, romper o silêncio e se dirigir, em geral, a uma delegacia de polícia a fim de registrar a ocorrência contra o agressor e solicitar as medidas protetivas de urgência, que normalmente consistem na proibição de aproximação e contato ou na ordem de afastamento do lar conjugal.
Assim, caso fosse a aplicação das regras originais das condições de admissibilidade da prisão preventiva, deveria ser analisado qual o tipo de delito cometido pelo agressor e a pena prevista, uma vez que, em regra, só cabe a custódia cautelar para crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade superior a 4 anos ou se o agressor for reincidente em crime doloso (artigo 313, incisos I e II do Código de Processo Penal).
No entanto, a Lei Maria da Penha ampliou as hipóteses de prisão em qualquer conduta, ainda que não seja criminosa, que importe em descumprimento das medidas protetivas, podendo inclusive ser decretada de ofício pelo juiz (artigo 20), se houver razões que a justifique.
E não é só isso, em 2018 a Lei nº 13.461 oficialmente criminalizou a conduta de descumprimento das medidas protetivas acrescentando o artigo 24-A na Lei Maria da Penha, interrompendo o ciclo de uma jurisprudência que estava caminhando para a atipicidade desta conduta. Agora, o agressor, além de poder ter a sua prisão preventiva decretada, poderá responder pelo delito específico previsto no referido artigo, além de outras sanções cabíveis (§ 3º).
Ademais, há inclusive o entendimento5 de que nem seria necessária a existência de medidas protetivas para que o agressor seja preso preventivamente, bastando que a mulher esteja sujeita a um risco inequívoco à sua integridade física ou psicológica, conforme enunciado aprovado no Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - Fonavid6:
ENUNCIADO 29: É possível a prisão cautelar do agressor independentemente de concessão ou descumprimento de medida protetiva, a fim de assegurar a integridade física e/ou psicológica da ofendida.
Ressalta-se ainda que o § 2º do artigo 12-C da Lei 11.340/2006 estabelece a vedação à concessão da liberdade provisória nos casos de risco à integridade física da mulher ou à efetividade da medida protetiva de urgência.
Por fim, ainda com o intuito de uma máxima proteção às mulheres que poderão correr riscos numa eventual soltura do agressor da prisão, a legislação prevê que a vítima deverá ser notificada especialmente ao ingresso e à saída da prisão, conforme disposto no artigo 21.
Ante o exposto e longe de esgotar o tema, entendemos que mesmo em meio ainda a muitos desafios e aprimoramentos, a Lei Maria da Penha representa uma grande conquista no enfrentamento à violência doméstica, considerada pelas Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três legislações mais avançadas do mundo, entre 90 países que têm normas sobre o tema.7
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1- Relatório "Progresso das Mulheres no Mundo 2008/2009" do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher - UNIFEM. Disponível aqui. Acesso em: 06 ago 2020.
2- Ver Em 13 anos, lei Maria da Penha passou por diversas alterações. Migalhas, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 06 ago. 2020.
3- Andréa Karla OLIVEIRA. Histórico, produção e aplicabilidade da Lei Maria da Penha (manuscrito): Lei nº11.340/2006. 2011. Disponível aqui.. Acesso em: 11 ago. 2020.
4- Evandro Fabiani CAPANO. Carta à diplomacia brasileira. Migalhas, 2020. Disponível aqui. Acesso em 25 jul. 2020.
5- Salientamos a divergência causada pela compreensão sobre a compulsoriedade da adoção de enunciados jurídicos em razão de não serem fruto de trabalho legislativo, mas sim entendimento acadêmico e jurídico, como aponta parte da doutrina.
6- AMB, Associação Brasileira de Magistrados. Enunciados do Fonavid.Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Disponível aqui.. Acesso em: 12 ago. 2020.
7- IMP, Instituto Maria da Penha. A Lei na Íntegra e Comentada. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2020.
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AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. Descumprir medidas protetivas agora é crime: (notas sobre a lei 13.641/2018). (notas sobre a Lei 13.641/2018). 2018.
AMB, Associação Brasileira de Magistrados -. Enunciados do Fonavid - Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
__________. Decreto-Lei nº. 3.689/1941 (Código de Processo Penal), de 3 de outubro de 1941.Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2020.
__________. Lei nº. 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 04 ago. 2020.
CAPANO, Evandro Fabiani. Carta à diplomacia brasileira. Migalhas, 2020. Disponível aqui. Acesso em 25 jul. 2020.
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi, posso contar. Fortaleza, 1994.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; REIS, Alexandre Cebrian Araújo. Direito Processual Penal Esquematizado. 9. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2020.
IMP, Instituto Maria da Penha -. A Lei na Íntegra e Comentada. Disponível aqui.. Acesso em: 12 ago. 2020.
MIGALHAS. Em 13 anos, lei Maria da Penha passou por diversas alterações. 2019. Disponível aqui.. Acesso em: 06 ago. 2020.
OLIVEIRA, Andréa Karla Cavalcanti da Mota Cabral de. Histórico, produção e aplicabilidade da Lei Maria da Penha (manuscrito): Lei nº11.340/2006. 2011. Disponível aqui.. Acesso em: 11 ago. 2020.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher: Convenção de Belém do Pará.Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2020.
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*Thiago Dias é advogado e professor, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2014). Especialista em Direito Ambiental, Direito Constitucional e Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes. Tem experiência na área de Direito Público, especialmente Direito Internacional Público e Direito Constitucional. É autor do livro "O G-4 e a Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas: o Brasil na ONU".
*Isaque Ribeiro foi Advogado do Colégio Notarial do Brasil/SP, atualmente atua como Escrevente Judiciário em Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no TJ/SP, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2014). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Única.