Tema 793 do STF e responsabilidade dos entes federados no SUS. Afinal, o que deve repercutir?
A ideia de que todos seriam responsáveis por custear as mesmas coisas, além de não atentar à legislação de regência do SUS, desconsiderava um fato importantíssimo: a diferença econômica entre os entes. Um município pequeno não pode ser obrigado, ainda que solidariamente, a fornecer as mesmas tecnologias que devem ser fornecidas pela União.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Atualizado às 08:08
Uma das questões que mais afligem os profissionais do direito que lidam com a judicialização da saúde diz respeito à responsabilidade pelo fornecimento de tecnologias. Mesmo sem estar prevista na Constituição Federal, em leis ou em atos infralegais, a jurisprudência brasileira sedimentou há mais de uma década que a União, os Estados e os municípios eram solidariamente responsáveis pelas prestações em saúde (art. 198, da CF e art. 15, da lei 8.080/90). É certo que todos esses entes compõem o SUS. Todavia, cada um tem a sua responsabilidade financeira definida, que passa pela pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (art. 19-U, da lei 8.080/90). As prestações de um não se confundem com as prestações de outro. E nem poderia ser diferente.
A ideia de que todos seriam responsáveis por custear as mesmas coisas, além de não atentar à legislação de regência do SUS, desconsiderava um fato importantíssimo: a diferença econômica entre os entes. Um município pequeno não pode ser obrigado, ainda que solidariamente, a fornecer as mesmas tecnologias que devem ser fornecidas pela União.
Por causa disso, a tese da solidariedade original teve um efeito nefasto. Na medida em que o paciente podia propor a ação judicial contra qualquer um dos entes federativos, ele, não raro, escolhia como legitimado passivo aquele que oferecesse menos resistência ao cumprimento das decisões judiciais. Com frequência, notava-se uma preferência da parte autora por litigar contra os Estados e os municípios, tendo em visto que a União reiteradamente descumpre ordens judiciais e, mais, não dispõe de meios para que bloqueios judiciais possam ser efetivados. Ainda, a composição do polo passivo também levava em conta o órgão jurisdicional no qual o paciente tivesse mais chances de obter provimentos favoráveis ("forum shopping").
Estados e municípios, com o aumento das demandas, viram-se obrigados a gastar altas somas para o fornecimento dos mais variados tipos de tecnologias em saúde, até mesmo de "alto custo" e contra o câncer. Houve um esgotamento dos recursos desses entes, o que levou a um grave desequilíbrio no SUS, agravado com a impossibilidade de obtenção de ressarcimento ou de rateio do que gastaram, tenha o processo tramitado na Justiça Federal ou na Justiça Estadual.
Pensando nisso, ao retomar o julgamento do RE 855.178, em embargos de declaração, o Supremo Tribunal Federal tentou corrigir os efeitos adversos da solidariedade, sem, contudo, afastá-la.
A tese fixada disse: "Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro"1.
O voto vencedor, do ministro Fachin, no desenvolvimento da tese, disse "Se o ente legalmente responsável pelo financiamento da obrigação principal não compuser o polo passivo da relação jurídico-processual, compete a autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento". Prossegue esclarecendo que "Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas (em todas as suas hipóteses), a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (art. 19-Q, da lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação".
Conclui-se que medicamentos padronizados devem ser obrigatoriamente demandados contra o ente responsável pelo seu financiamento, de acordo com as atribuições pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite. Também ficou claro no voto vencedor que processos que pleiteiem medicamentos não padronizados devem ter a União no polo passivo.
Tais questões estão sacramentadas, pela simples razão de que o voto vencedor trouxe a solução para elas de maneira direta e objetiva. Aliás, no extrato da ata de julgamento ficou consignado que o tribunal firmou entendimento "nos termos do voto do ministro Edson Fachin".
Entretanto, da leitura da discussão que houve no plenário, as coisas deixaram de ser tão claras, pelo menos no que se refere aos processos de medicamentos não padronizados. O ministro Lewandowski reafirmou a tese da solidariedade inicial. O ministro Barroso defendeu que a tese deveria se referir somente a medicamentos não padronizados. Já o ministro Alexandre de Moraes falou que somente a União deveria ser legitimada passiva para processos de tecnologias não incorporadas.
A falta de definição clara do resultado das discussões vem ensejando interpretações diferentes do julgado.
Todavia, como já dito acima, o voto vencedor detalhou a tese fixada e, portanto, é ele que deve servir de parâmetro para os processos de saúde. Extrair a ratio decidendi de diálogos entre 11 ministros contrariamente ao que foi estabelecido no voto vencedor é algo que não fornece segurança jurídica. Num primeiro momento, é importante salientar que as falas dos ministros, com frequência, sofrem interrupções. Algumas falas não são concluídas, o que fica expresso por reticências. Ainda, não se pode perder de vista que, no caso específico, não há como extrair um sentido único do que ficou decidido, a não ser através de uma análise detalhada do acórdão.
Da leitura atenta do decidido, percebe-se que nenhum dos ministros que acompanhou o relator para o acórdão (conhecendo e rejeitando os embargos de declaração) se posicionou expressamente contra a obrigatoriedade da União de compor o polo passivo em ações em que se pleiteia tecnologia não padronizada. Conclui-se, então, que eles aderiram ao voto nessa parte.
Já aqueles que votaram no mesmo sentido do ministro Fux (conhecendo e dando efeitos infringentes aos embargos) expressamente falaram em seus votos que a União deve ser legitimada passiva nesses processos.
A dúvida surge em razão de duas circunstâncias. A primeira delas diz respeito ao fato do ministro Fux, relator original da ação, ter se manifestado contra a segunda parte da proposta de tese do ministro Toffoli, que se referia à legitimidade para os processos que envolviam tecnologias não distribuídas no SUS. No entanto, a fundamentação para afastar essa parte não trouxe nenhum argumento relativo especificamente à competência da União de iniciar e dar seguimento ao processo de incorporação de tecnologia. Ainda, no momento de fixação da tese, o ministro Fux assentiu com a tese do ministro Fachin, QUE ESTAVA DETALHADA NO VOTO DESTE ÚLTIMO, e dizia que a União deveria ser necessariamente parte no processo que pedia prestação fora do sistema. Assim, o primeiro suposto argumento contra a obrigatoriedade de a União figurar nesse tipo de lide não se sustenta.
O segundo argumento é extraído da fala do ministro Fachin, em resposta à inquietação do ministro Lewandowski também no momento de fixação da tese. Este se mostrou preocupado com a parte da tese que dizia que aos juízes "competia" direcionar o cumprimento da obrigação contra o ente responsável. Ele, então, propôs a mudança da tese para que nela ficasse estabelecido que o juiz "poderia" direcionar o cumprimento ao ente responsável. Sua intenção era que o juiz não tivesse que se preocupar com questões de atribuição de competência em processos urgentes, como "num acidente grave", num AVC" ou "num enfarte". Nesses casos, o ministro disse que a dificuldade de saber quem deveria prestar o serviço poderia dificultar a análise do caso pelo juiz. O ministro Fachin asseverou que comungava das premissas expostas pelo seu colega. E acrescentou: "Por isso que a proposta da tese, na sua primeira parte, reafirma a solidariedade e, ao mesmo tempo, atribui esse poder/dever à autoridade judicial para direcionar o cumprimento. Não se trata da formação do polo passivo, tomei esse cuidado para evitar o debate sobre formação de litisconsórcio ou a extensão de um contraditório deferido para direcionar o cumprimento. Ainda que direcione e, por algumas circunstâncias, depois se alegue que o atendimento - exatamente naquela diferença de Bobbio citada por Vossa Excelência ontem - às demandas da cidadania possa ter levado a um eventual ônus excessivo a um ente da Federação, a autoridade judicial determinará o ressarcimento - é a parte final - a quem suportou o ônus financeiro".
Não obstante, o que foi falado pelo ministro Fachin também não guarda relação com a parte do detalhamento da tese que trata de tecnologias não incorporadas, justamente porque não era esse o tema do debate no momento. Ainda, quando o ministro Fachin fala em "formação" de litisconsórcio passivo, parece-nos que ele quer dizer do momento inicial de propositura da ação. Aliás, essa é a única interpretação coerente com o que ficou exposto em seu voto.
O que se quis dizer, salvo melhor juízo, é que, numa situação de emergência, o juiz pode determinar o cumprimento contra o ente que estiver no processo para evitar o perigo de decisões tardias. Note-se que o ministro falou da "extensão de um contraditório deferido", referindo-se ao elastecimento temporal da fase de contraditório acerca do ente responsável. Porém, nesses casos, em momento posterior e mitigada a situação de urgência, ao juiz compete (poder-dever) incluir o ente responsável no feito para que ele ressarça aquele que cumpriu a decisão judicial. Ou seja, trata-se de litisconsórcio, sim. Mas não se trata de necessidade de litisconsórcio desde o início (formação) do processo.
A própria União vem alegando sua ilegitimidade passiva nos processos, fundamentando seu pedido na citação acima do ministro Fachin. Traz, inclusive, a citação em negrito no início de suas petições. Recorta um trecho do acórdão sem dar a devida atenção ao contexto em que foi trazido.
Com isso, as dúvidas estão surgindo, com evidente prejuízo para todos, mas principalmente para as partes. Há processos que tratam de medicamentos não padronizados que são ajuizados somente contra o Estado e que permanecem na Justiça Estadual. Os juízes estaduais, quando se deparam com esses feitos, ou (I) incluem a União de ofício no polo passivo ou (II) mandam a parte autora emendar a inicial para fazer a inclusão ou (III) remetem o processo à Justiça Federal sem que a União esteja na lide. O juiz federal, a depender da sua interpretação acerca do tema 793, pode receber o processo e aceitar sua competência ou pode determinar que ele seja devolvido para o juiz estadual. Nos tribunais, as divergências continuam.
É importante salientar que não se trata só de fixação de competência, mas também de estruturação dos órgãos e do Poder Judiciário. Caso vingue a conclusão de que tecnologias não padronizadas têm de ser necessariamente pleiteadas contra a União, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal terão de tomar uma série de medidas a fim de poder absorver a demanda.
Enquanto isso, temos um julgamento de repercussão geral, que deixou dúvidas em relação ao que deve repercutir, trazendo insegurança a todos aqueles que lidam com a judicialização da saúde e prejuízo ao jurisdicionado.
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1 Sobre o tema da responsabilidade financeira dos entes em matéria de saúde, confira-se o artigo "Da Responsabilidade solidária na assistência à saúde no SUS", disponível em Clique aqui .
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*Ana Carolina Morozowski é juíza federal substituta da 3ª Vara Federal de Curitiba e especializada em saúde.