A voz de prisão pelo particular
O Estado tem a obrigação de cumprir sua função relacionada com a segurança pública e, na impossibilidade de exercê-la no exato momento do cometimento de um crime, delega ao particular a legitimidade de agir e falar em seu nome.
domingo, 16 de agosto de 2020
Atualizado em 17 de agosto de 2020 09:12
A imprensa noticiou que o secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten, quando se encontrava em um bairro na cidade de São Paulo, foi repentinamente abordado por uma pessoa que, simulando portar uma arma sob a camisa, exigiu a imediata entrega do seu relógio.
Finalizada a ameaça, o secretário recusou-se a entregar o bem e, fazendo uso de uma arma que portava, perseguiu o roubador por alguns metros, imobilizou-o, deu-lhe voz de prisão e ficou aguardando a chegada dos policiais. Conduta esquadrinhada nos limites da legítima defesa própria.
Trata-se de um crime de roubo na modalidade tentada por não ter o agente conseguido seu intento em razão da pronta reação da vítima, que impediu a consumação do ato.
Tal fato ilustra de maneira até didática o permissivo legal previsto no artigo 301 do Código de Processo Penal, dispositivo que permite a "qualquer do povo" prender em flagrante delito quem quer que seja. É o caso do flagrante facultativo, assim tratado pela doutrina, já que o cogente fica sob a responsabilidade dos agentes policiais.
É comum o leigo em Direito achar estranho o particular ser detentor de tamanho poder. Da mesma forma questiona a participação do cidadão como membro do Tribunal do Júri, nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida. Sem falar ainda que o legislador conta também com a participação do qualquer do povo, franqueando-lhe a comunicação oral ou por escrito à autoridade policial para levar a notitia criminis em que caiba ação pública.
Das prisões cautelares - compreendendo a temporária e a preventiva - a flagrancial é a que reúne a maior carga de credibilidade pois ocorre quando o agente está praticando o crime, acabou de praticá-lo, foi perseguido logo após ou foi encontrado logo depois em situação de presunção de autoria. Nesta escala decrescente, as duas primeiras hipóteses são consideradas de flagrante perfeito, pois congregam, ao mesmo tempo, todos os predicados para aperfeiçoar a detenção e torná-la aceitável perante as regras do devido processo legal. É a verdadeira configuração do flagrans crimen, que carrega a certeza visual do cometimento do ilícito, ofertando, de imediato, a autoria e materialidade, requisitos indispensáveis para o fumus bonis juris e o periculum libertatis, para que o preso seja levado coercitivamente à presença da autoridade policial, por seus agentes ou até mesmo por qualquer um do povo.
Diferentemente do que ocorre com a decretação da prisão preventiva, considerada uma prisão laboratorial, com a necessidade de se pinçarem os fatos e circunstâncias com lentes voltadas para o bom senso, atendendo os critérios de legalidade, conveniência e necessidade.
Tamanha legitimidade do particular remonta à própria filosofia do Direito. Todo discurso público tem como destinatário o cidadão que irá não só introduzir como também apontar uma lei considerada fundamental e que atenda os motivos determinantes da razão pública, que busca, em síntese, o bem comum. A pessoa, tanto na sua individualidade como ente do agrupamento social, é o fato gerador em torno do qual serão edificadas as propostas compatíveis com o anseio popular. Daí que, em alguns casos especiais no Direito, o Estado confere ao cidadão um verdadeiro múnus público, elegendo-o como seu longa manus.
É o que acontece no caso específico da prisão flagrancial. O Estado tem a obrigação de cumprir sua função relacionada com a segurança pública e, na impossibilidade de exercê-la no exato momento do cometimento de um crime, delega ao particular a legitimidade de agir e falar em seu nome. É como se fosse uma procuração com poderes específicos para determinada situação. E o particular, nesta investidura, age como se fosse um policial.
Com muita perspicácia já advertia Sandel: "Se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum".1
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1 Sandel, Michael J. Justiça - O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 325.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura, advogado.