A ratificação do Protocolo de Nagoia e os reflexos para a indústria cosmética
O Protocolo passará a ter pleno vigor no Brasil, 90 (noventa) dias após a data em que o Governo depositar o instrumento de ratificação junto à Organização das Nações Unidas.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Atualizado às 09:17
O Brasil está a um passo de aderir à regra global1 de acesso aos recursos genéticos, uma vez que o Congresso aprovou em 06 de agosto de 2020 o Projeto de Decreto Legislativo 324/20, que ratifica o Protocolo de Nagoia no Brasil.
O Protocolo passará a ter pleno vigor no Brasil, 90 (noventa) dias após a data em que o Governo depositar o instrumento de ratificação junto à Organização das Nações Unidas.
I) O que é o Protocolo de Nagoia (aqui chamado simplesmente Protocolo)?
Trata-se de um tratado internacional que decorre da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)2 e procura implementar um dos principais objetivos da CDB, que é a repartição de benefícios, ou seja, a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos pelos países usuários (que acessaram recursos genéticos) com os países provedores (países de origem destes recursos). Trata-se, em apertadíssima análise, de um instrumento que permite que os países provedores disciplinem a forma que outros países/usuários tenham conhecimento e obedeçam às suas regras de acesso e repartição de benefícios.
II) Quais são os reflexos para a indústria nacional com a adesão ao Protocolo de Nagoia?
Em primeiro lugar, vale frisar que o Protocolo cria direitos e obrigações para as partes contratantes, ou seja, o Estado brasileiro é quem se compromete num primeiro momento, não havendo impacto inicial para a indústria, mas, obviamente, haverá reflexo secundário para o mercado, pois o Estado deverá se adaptar em obediência as regras do Protocolo. Este reflexo secundário para a indústria, resulta em diversas frentes, desde a pesquisa e desenvolvimento, que demandará ao empresário uma atenção maior ao uso dos insumos e matérias-primas estrangeiras - o que significa identificar as regras de acesso e repartição de benefícios do país provedor daquela determinada matéria-prima - como também para a fabricação e exportação de produtos. Por outro lado, haverá também impacto indireto para direitos de propriedade industrial resultantes. Neste campo, vale lembrar que o Brasil possui regras bastante rígidas para a concessão de patentes que possuem ativos da biodiversidade brasileira (seja para a indústria local ou sediada no exterior) e que se sujeitará ao mesmo nível de exigência lá fora, com a provável e definitiva ratificação do Protocolo.
Algumas questões são controversas e muito sensíveis, sendo que seguramente uma delas é a interpretação se a ratificação do Protocolo possui efeitos retroativos. Nos parece, a princípio, que não há que se falar em retroatividade, pois não houve qualquer menção sobre isso no conteúdo do Protocolo, além do que o próprio texto aprovado pelo Senado contempla a irretroatividade do Protocolo.
Há uma peculiaridade na legislação brasileira, que, aparentemente, se choca com a regra geral de não retroatividade do Protocolo. O legislador brasileiro definiu que os usuários que não haviam acessado regularmente o patrimônio genético/conhecimento tradicional associado ou ainda, tivessem deixado de repartir benefícios na vigência da Medida Provisória 2.186-16/2001, poderiam fazê-lo, desde que repartissem benefícios pelo período prévio, além de assumirem outras obrigações através de uma espécie de ajustamento com o Estado, formalizado através de um Termo de Compromisso3. A situação anômala que se coloca é a seguinte: se a interpretação para o Protocolo é que se trata de uma norma não retroativa, as empresas estrangeiras teriam uma vantagem competitiva frente às indústrias brasileiras, que tiveram que obedecer piamente ao processo de regularização (assinando acordo com o Governo, se cadastrando e repartindo benefícios, sob pena de autuação). Se a interpretação que prevalecer, no entanto, for no sentido de que as regras do Protocolo são retroativas, aplicam-se para as empresas estrangeiras as mesmas regras já previstas para as empresas brasileiras.
As respostas para os receios acima (do Brasil deixar de receber divisas, ou ainda, de ser obrigado a arcar com valores que podem impactar em seu Produto Interno Bruto) nos parece que dependerão, notadamente, das negociações futuras que advirão do encontro das Partes e isso dependerá, obviamente, de como o Brasil se portará nestas discussões.
III) Alguns aspectos que necessitarão de adequação legislativa, a fim de cumprir com o Protocolo de Nagoia.
Alguns aspectos já chamam a atenção e merecerão discussão sobre os impactos na legislação local:
i) Segurança jurídica quanto as regras de acesso e repartição de benefícios e a necessidade de se buscar equilíbrio (equidade e justiça) na negociação de termos (acordos) entre provedores e usuários. O equilíbrio nas negociações é que deverá prevalecer, a fim de que o Protocolo seja um instrumento de igualdade e não cause danos às economias locais. O país aderirá ao Protocolo com interesses tanto como provedor, como também como usuário, ou seja, uma verdadeira via de mão dupla, o que reforça a necessidade de se preparar profundamente).
ii) Conceitos novos trazidos pelo Protocolo que deverão se harmonizar frente ao conceito de acesso previsto na legislação local. A novidade do Protocolo, frente a legislação local, é que o Protocolo definiu os conceitos de "biotecnologia" e "derivado". Assim, ou a legislação local adapta estes conceitos para que haja leitura harmônica com os conceitos internos sobre P&D (que é um conceito chave para a legislação, pois é a definição de acesso ao patrimônio genético), ou prevalecerá os conceitos trazidos pelo Tratado.
iii) Diferença entre o conceito da repartição de benefícios do Protocolo (mais abrangente) e da lei local (mais restritivo). Sustenta o Artigo 5 do Protocolo de Nagoia que haverá repartição de benefícios pelo uso "bem como pelas subsequentes aplicações e comercialização". Importante lembrar que a legislação local restringiu a repartição de benefícios apenas e tão somente ao fabricante de produtos acabados4 ou o produtor do material reprodutivo, isentando o restante da cadeia, inclusive aqueles que realizam a pesquisa ou os fabricantes de produtos intermediários. Neste aspecto, o país deverá avaliar se mantêm regras pós ratificação, ou se deixa a repartição de benefícios mais abrangente como define o Tratado.
iv) O Protocolo possui como regra geral a necessidade de "consentimento prévio", não apenas para Conhecimento Tradicional Associado, mas também para acesso aos recursos genéticos. Como se sabe, o Brasil definiu que o acesso ao patrimônio genético (regra geral) dispensa a necessidade de autorização prévia para acesso ao patrimônio genético, exigindo, todavia, que haja associação do usuário estrangeiro com empresa nacional para os fins do cadastro do acesso junto ao SISGEN. Caberá ao país decidir se há necessidade de criar um mecanismo contendo consentimento prévio para entes estrangeiros ou se bastaria a regra hoje existente.
v) Define o Protocolo que cada Parte designará um ponto focal nacional, uma autoridade nacional e um ponto de controle (checkpoint). Resumidamente, o ponto focal deverá disponibilizar informações sobre os procedimentos para obtenção de consentimento prévio informado. No que diz respeito a autoridade nacional, o Protocolo define que será responsável pela concessão do acesso. Finalmente, define o Protocolo que cada parte tomará medidas para monitorar e para intensificar a transparência relativa à utilização de recursos genéticos, sendo que uma destas medidas é a designação de um ou mais pontos de controle (checkpoints), que, coletarão e receberão informações relevantes relacionadas a consentimento prévio informado, a fonte do recurso genético, o estabelecimento de termos mutuamente acordados e/ou utilização de recursos genéticos.
Conclusões.
O que é realmente importante debater e discutir são os impactos (seja como país provedor ou como país usuário), além do custo de transação em implantar o regulatório necessário para dar transparência aos países usuários, ou ainda, estabelecer critérios de acompanhamentos claros sobre a legislação de cada um dos países que são Partes, seja para monitorar o acesso e uso da biodiversidade brasileira utilizada pelos países Partes, ou ainda, para apurar o critério utilizado por estes países para fins de repartição de benefícios.
Considerar a ratificação como uma oportunidade ou uma perda, dependerá fundamentalmente da capacidade do país demonstrar que pode gerir, com eficiência, esta via de mão dupla, que representa a repartição de benefícios para o Brasil.
Seria ingênuo acreditar que a condição de país megadiverso, por si só, representaria uma condição certeira de sucesso. Não é raro a substituição de matérias-primas na indústria, por uma série de razões (preço, qualidade, apelo comercial etc.). O interesse pelo P&D e fabricação de produtos contendo ativos da biodiversidade brasileira dependerá de condições comerciais que sejam competitivas para outros países. Assim, o Protocolo poderá representar um excelente negócio ou um grande fracasso, dependendo da disponibilidade de regras claras e factíveis.
Ainda que haja uma enorme complexidade regulatória pela frente, não há como o Brasil ficar de fora da discussão. Apenas se sentando na mesa com as outras Partes é que o país poderá discutir e buscar estabelecer o diálogo, gerando valor para os seus ativos e fazendo com que a bioeconomia possa representar um fator de transformação social, culminando inclusive em diminuição de pobreza e desigualdade.
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1- 126 países já ratificaram o Protocolo de Nagoia, inclusive a Comunidade Europeia.
2- A interpretação do Protocolo far-se-á com uma leitura harmônica entre este e a CDB, vez que a Convenção é que define os conceitos e obrigações necessárias para a compreensão do Protocolo.
3- Lei 13.123/15 - artigo 35 e seguintes.
4- Lei 13.123/15 - Artigo 17 e seguintes.
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*Luiz Ricardo Marinello é mestre em Direito pela PUC/SP, professor da INSPER/SP, coordenador adjunto da Comissão de Transferência de Tecnologia e Franquias da ABPI; colunista da Revista da ASPI, sócio de Marinello Advogados.