Decreto estadual 70.046/20 e sua inconstitucionalidade à luz do conceito de sanção pública
As inconstitucionalidades constantes no decreto citado são evidentes, pois tal ato busca compelir o contribuinte a recolher ICMS, bem como o coage a cumprir obrigações acessórias dessa operação por meios alheios àqueles conferidos legalmente ao Estado para exercê-las.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Atualizado às 09:16
Publicado em 10 de junho de 2020, no Diário Oficial do Estado (DOE) de Alagoas, o decreto 70.046/20 alterou o Decreto Estadual (DE) 3.481/06, o qual dispõe sobre o Cadastro de Contribuintes do ICMS do Estado de Alagoas (CACEAL), cujo art. 23 foi editado, inserindo-se novas hipóteses de suspensão da inscrição no referido cadastro:
Art. 1º O art. 23 do Decreto Estadual nº 3.481, de 2006, passa a vigorar acrescido dos incisos IV a VI ao seu caput e do § 3º, com a seguinte redação:
Art. 23. A inscrição será enquadrada na situação cadastral suspensa quando o contribuinte:
(.....)
IV - optante pelo Sistema de Recolhimento em Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos pelo Simples Nacional - SIMEI, no ano-calendário, adquirir mercadorias ou auferir receitas, em montante superior a 50% (cinquenta por cento) do limite de receita bruta previsto em Resolução do Comitê Gestor do Simples Nacional, e verificada a falta da respectiva comunicação obrigatória de desenquadramento ou do pagamento do ICMS relativo às citadas aquisições;
V - deixar de recolher o ICMS, exceto o devido por substituição tributária, pelos períodos respectivamente indicados, consecutivos ou alternados:
a) 2 (dois) meses, na hipótese de contribuinte beneficiário de tratamento tributário diferenciado ou favorecido, excluído o optante pelo Simples Nacional; e
b) 3 (três) meses, nos demais casos;
VI - estiver irregular no cumprimento de obrigações acessórias, inclusive quanto a declarações inexatas sobre operações ou prestações realizadas e apuração do imposto.
(...) (sem grifos no original)
As inconstitucionalidades constantes no decreto citado são evidentes, pois tal ato busca compelir o contribuinte a recolher ICMS, bem como o coage a cumprir obrigações acessórias dessa operação por meios alheios àqueles conferidos legalmente ao Estado para exercê-las.
Esses meios alheios são conhecidos no ordenamento pátrio como Sanções Políticas, que se materializam pelas restrições de direitos que objetivam obrigar o contribuinte a recolher determinado tributo, comumente fundamentadas no poder de polícia outorgado à Administração Pública.
Nesta toada, Hugo de Brito Machado1 ao analisar as sanções políticas, as conceitua:
(.) Prática antiga, que, no Brasil, remonta aos tempos da ditadura Vargas, é a das denominadas sanções políticas, que consistem nas mais diversas formas de restrições a direitos do contribuinte como forma oblíqua de obrigá-lo ao pagamento de tributos. São exemplos mais comuns de sanções políticas a apreensão de mercadorias em face de pequena irregularidade no documento fiscal que as acompanha, o denominado regime especial de fiscalização, a recusa de autorização para imprimir notas fiscais, a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes, a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte, entre muitos outros.
No ordenamento brasileiro, as penalidades restritivas de direito são rotineiramente aplicadas pelo Judiciário. Tais atos, quando aplicados pela Administração Pública, são fortemente rechaçados pela doutrina, haja vista que desrespeitam os princípios fundamentais do sujeito de direito, conforme ressalta Heleilson Cunha Pontes2:
O princípio da proporcionalidade, em seu aspecto de necessidade, torna inconstitucional também grande parte das sanções indiretas ou políticas impostas pelo Estado sobre os sujeitos passivos que se encontrem em estado de impontualidade com os seus deveres tributários. Com efeito, se com a imposição de sanções menos gravosas, e até mais eficazes (como a propositura de medida cautelar fiscal e ação de execução fiscal), pode o Estado realizar o seu direito à percepção de receita pública tributária, nada justifica validamente a imposição de sanções indiretas.
Tais penalidades normalmente são impostas por meio de ação estatal, fundamentada em atos normativos secundários, que deixam de observar os ditames estabelecidos na Carta Magna, sendo a via utilizada para inserir, no ordenamento pátrio, normas corrompidas pelo vício da inconstitucionalidade, posto que violam diretamente o disposto no art. 5º, XVIII, e no parágrafo único do art. 170, ambos da Constituição Federal de 1988, cabendo ao fisco se utilizar das vias aptas à constituição definitiva do crédito e consequente cobrança pela modo adequado.
Consoante argumentação levantada anteriormente, o fundamento utilizado para aplicar as penalidades reside no conceito deturpado do poder de polícia do Estado, na tentativa de justificar as arbitrariedades cometidas pela Administração, uma vez que a prerrogativa de tributar não concede ao Estado a possibilidade de suprimir ou inviabilizar direitos constitucionalmente protegidos pela própria Carta Magna.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao verificar a rotineira prática supressora de direitos individuais exercida pela administração pública, editou as súmulas 70, 323 e 547, in litteris:
Súmula 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Esses instrumentos objetivam preservar a aplicabilidade plena dos princípios constitucionais da legalidade, inafastabilidade da jurisdição, não confisco, proporcionalidade e presunção de inocência, diretamente atingidos pela prática arbitrária das sanções políticas.
Tais violações se dão, na essência, pelo fato de o procedimento referente às cobranças de tributos possuir como característica a sua austeridade, erguida sob ampla previsão legal, de modo que a exigência de pagamento de tributos porventura devidos deve ser feita nesses estreitos limites estabelecidos pela legislação pátria.
Desse modo, na esfera administrativa, o tributo deve ser exigido por meio de notificação válida de lançamento, oportunizando o pleno exercício da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, enquanto que no judiciário, o crédito deve ser cobrado por meio da ação de execução, regida pela lei nº 6.830/80, respeitando os mesmos princípios inerentes ao procedimento administrativo.
Entretanto, mesmo com as claras violações aos ditames constitucionais, nota-se a tendência crescente da proliferação dessa atuação da Administração Pública, cuja autorização constitucional há muito foi perdida, tornando-se ilógica a sua contínua aplicação, visto que existente procedimento devidamente legislado a ser utilizado para a efetiva cobrança coativa de credores estatais.
Ressalta-se que, apesar de todos os apontamentos realizados, não existe na doutrina a definição objetiva das sanções políticas, em razão da vasta e diversa realidade de cada um dos casos concretos em que são aplicadas.
Nesse sentido, a jurisprudência buscou delimitar os critérios objetivos inerentes a esses atos, tornando, dessa forma, a sua visualização e identificação mais claras.
Assim foi feito no informativo 707 do Supremo Tribunal Federal, em que o Ministro Joaquim Barbosa, ao analisar o Recurso Extraordinário 550.769-RJ3, discorre sobre os parâmetros utilizados nessa identificação, conforme se lê:
(1) relevância do valor dos créditos tributários em aberto, cujo não pagamento implica a restrição ao funcionamento da empresa; (2) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle do ato de aplicação da penalidade; (3) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários cujo não pagamento implica a cassação do registro especial.
Nota-se que o Ministro analisou a estrutura principiológica dos instrumentos administrativos, discorrendo que sempre se deve ponderar os direitos públicos envolvidos, materializados sob o prisma ambíguo dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que assumem duas dimensões: de sobreprincípio e de princípio incidente nos critérios quantitativos, assegurando a devida proporção às penalidades nascidas dos débitos existentes, como ressalta Florence Haret4.
Florence Haret, face ao dilema de ponderação de valores necessários à sua identificação, preceitua os seguintes critérios objetivos que as caracterizam:
1. Exercício de poder de polícia, em lei ou em ato de sua aplicação;
2. Com desvio de finalidade;
3. Fazendo exigir valores referentes a fatos geradores diferentes da situação ensejadora do exercício do poder de polícia;
4. Mediante impedimento do contribuinte em insurgir-se contra os valores cobrados em atraso;
5. Pela prática de atos constritivos às garantias da livre iniciativa, livre concorrência etc.
Nesse sentido, a mais variada jurisprudência vem se posicionando sobre tais sanções, como é o caso do TRF4, que editou a súmula 6, preceituando: "a autoridade administrativa não pode, com base na IR 54/81 (SRF), exigir a comprovação de recolhimento de ICMS, por ocasião do desembaraço aduaneiro". Partindo desse raciocínio, conclui-se que também é vedada a apreensão de qualquer mercadoria com o fito de compelir o contribuinte a recolher determinado tributo, ou, como no caso em análise, a suspensão da inscrição no Cadastro de Contribuintes do Estado de Alagoas.
Assim, no gancho da controvérsia sob análise, o ministro Luiz Fux5 discorreu:
Trata-se, à evidência, de um mecanismo coercitivo de pagamento do tributo repudiado pelo nosso ordenamento constitucional. Por evidente, tal medida vulnera a um só tempo os incisos IV e V do art. 150 da Lei Fundamental de 1988, que vedam, respectivamente, a cobrança de tributos com efeitos confiscatórios e o estabelecimento de restrições, por meio da cobrança de tributos, ao livre tráfego de pessoas ou bens entre os entes da Federação.
Conforme todo o exposto, depois de demonstrado o posicionamento das mais altas cortes do Poder Judiciário, a continuidade dessas práticas restritivas de direitos constitucionais, com o fito de alimentar a sanha arrecadatória do Estado, contribui diretamente para um cenário juridicamente instável, resultando em clara ofensa aos direitos dos contribuintes, visto que, em razão da suspensão da inscrição no Cadastro de Contribuintes do Estado de Alagoas, incontáveis contratempos recairão sobre a sua atividade, resultando em possíveis entraves à própria atividade econômica.
Verifica-se, portanto, a necessidade do combate a esse tipo de ato, em prol da defesa dos preceitos basilares do ordenamento jurídico brasileiro, face à clara inconstitucionalidade do Decreto Estadual 70.046/20, tendo em vista o seu caráter arbitrário, posto que se trata de mais uma espécie de sanção política, método coercitivo alheio às vias legalmente previstas, que objetiva compelir o contribuinte a cumprir com as suas obrigações fiscais.
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1 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito tributário. Ed. Malheiros. São Paulo, 2004, p. 468.
2 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. Ed. Dialética. São Paulo, 2000, P. 141-142
3 STF, RExt 550.769, Ministro Joaquim Barbosa
4 Desvendando as sanções políticas em direito tributário: Critérios objetivos de delimitação das sanções políticas sob a ótica da jurisprudência do Supremo mais recente. Haret. Florence. Disponível em
5 STF, ADI 4628, Ministro Relator Luiz Fux;
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*Pedro Becker Calheiros Correia de Melo é advogado da área de Direito Administrativo de Martorelli Advogados.