A lei 14.030 de 28/7/20 - (Prorrogação de prazos e assembleias digitais)
Que coisa se pode depreender de tudo isso? Que após 30/10/20 as assembleias só podem ser presenciais, desde que observadas as determinações das autoridades sanitárias? Ou que poderiam ser efetuadas por meios eletrônicos também, mesmo que posteriormente à aludida data?
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Atualizado às 08:27
a). Antecedentes
a.1 O acréscimo de parágrafo único ao art. 121 da lei 6.404/76
O antecedente remoto de um dos aspectos enfocados pela recente lei 14.030, de 28/7/20 é o acréscimo de parágrafo único ao art. 121 da lei 6.404/76 (LSA), com a redação que lhe deu a lei 12.431, de 24/6/11, do seguinte teor:
"Art. 121. (...)
Parágrafo único. Nas companhias abertas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários".
Antes mesmo dessa autorização legal, todavia, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já admitira o voto e a participação a distância por meio da Instrução Normativa 481, de 17/11/09, que sofreu várias alterações (Instruções CVM 552/14, 561/15, 565/15, 567/15, 594/17, 609/19 e 614/19).
Mas a participação do acionista a distância ao que se saiba, nunca ocorreu - mas tão somente o voto a distância - algo que deve mudar de figura, diante das circunstâncias.
a.2 A Medida Provisória 931
Em 30/3/20, em face da pandemia que passou a assolar o país, foi editada a Medida Provisória 931, que, além de outras providências, alterou o Código Civil, a Lei das Sociedades Cooperativas (Lei 5.764/1971 - LCoop), e a LSA.
Essa Medida Provisória foi regulamentada pela Instrução Normativa DREI 79, de 14/4/20, bem como pela Instrução CVM 622, de 17/4/20.
a.3 A promulgação da lei 14.010
Em 10/6/20, foi promulgada a lei 14.010, que dispôs sobre o "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid 19)", cujo art. 5º, caput e respectivo parágrafo único, assim prescreveram:
"Art. 5º. A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica.1
Parágrafo único. A manifestação dos participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial."
b) A situação atual
Em 28/7/20, foi promulgada a lei 14.030, que transformou a Medida Provisória 931 em lei, com pequenas alterações.
A lei 14.030 teve três principais objetivos: (i) possibilitar a prorrogação dos prazos para realização de assembleias e reuniões ordinárias de sócios; (ii) prorrogar os prazos de arquivamento de atos nas Juntas Comerciais; e (iii) permitir a realização de assembleias inteiramente digitais, com voto e participação a distância nas sociedades anônimas abertas ou fechadas, nas sociedades cooperativas e nas sociedades limitadas.
b.1 A prorrogação dos prazos para realização de assembleias e reuniões ordinárias de sócios
O art. 1º da lei 14.030 permitiu, excepcionalmente, a prorrogação para realização de assembleias ordinárias nas sociedades anônimas cujos exercícios sociais tenham sido encerrados entre 31/12/19 e 31/3/20 pelo prazo de 7 (sete meses) a contar do término do exercício social, declarando sem efeito eventuais disposições contratuais (sic) em contrário (§ 1º).
Como consequência, determinou que os mandatos dos administradores, membros do conselho fiscal e de comitês estatutários ficassem prorrogados até a realização da assembleia geral ordinária ou da reunião do conselho de administração, conforme o caso (§ 2º).
Ressalvada eventual disposição estatutária em contrário, a lei autorizou que o conselho de administração, ad referendum da assembleia geral, delibere sobre assuntos urgentes de competência desta última (§ 3º).2
Determinou, por fim, que todas essas disposições são aplicáveis às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às subsidiárias das empresas ou sociedades em questão (§ 4º).
O art. 2º da lei autorizou o conselho de administração, se houver, ou a diretoria, a declarar dividendos intercalares, na forma do art. 204 da LSA, independentemente de reforma estatutária.
De acordo com o art. 3º da lei, a CVM poderá, durante o exercício de 2020, prorrogar os prazos estabelecidos na LSA, obviamente para as companhias abertas3. O parágrafo único desse artigo atribui à CVM competência para fixar a data de apresentação das respectivas demonstrações financeiras.
O art. 4º da lei 14.030 repete, mutatis mutandis, para as sociedades limitadas, o disposto no art. 1º e respectivos §§ 1º e 2º respeitantes às sociedades anônimas.
O art. 5º da lei contém um comando diverso para as sociedades cooperativas (inclusive as de crédito) e a entidade de representação do cooperativismo: autoriza a realização da assembleia geral ordinária (art. 44 da LCoop e 17 da lei Complementar 130) até o prazo de 9 (nove) meses contado do encerramento do exercício social, determinando também, por consequência, a prorrogação dos mandatos dos membros dos órgãos de administração, fiscalização e de outros órgãos estatutários até a efetivação do conclave.
O art. 7º da lei também contém um comando diverso - e ininteligível - para as fundações4 e para as demais sociedades (sociedades simples que não adotarem a forma de sociedade limitada, sociedades em nome coletivo, em comandita simples e em comandita por ações5): elas deverão observar as restrições para as reuniões e assembleias presenciais até 31/12/20, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais.
Mas, ao mesmo tempo, estendeu a elas o prazo de 7 (sete) meses para a realização de assembleia geral e prorrogação do mandato de dirigentes, no que couber (parágrafo único, inciso I), bem como o disposto no art. 5º da lei 14.010, de 10/6/20 (parágrafo único, inciso II). Referido dispositivo legal, como vimos, autorizou que as assembleias, inclusive as das associações, poderiam ser realizadas até 30/10/20 por meios eletrônicos.
Que coisa se pode depreender de tudo isso? Que após 30/10/20 as assembleias só podem ser presenciais, desde que observadas as determinações das autoridades sanitárias? Ou que poderiam ser efetuadas por meios eletrônicos também, mesmo que posteriormente à aludida data?
Não dá para entender.
b.2 A prorrogação dos prazos de arquivamento de atos nas Juntas Comerciais
Esta foi uma das providências mais salutares da lei 14.030, dadas as gravíssimas consequências que a falta de arquivamento no prazo legal poderia acarretar.
O art. 6º, inciso I, estabelece que o prazo dos atos sujeitos a arquivamento previsto no art. 36 da lei 8.934/94 6-7, assinados a partir de 16/2/20, somente começará a contar da data em que a respectiva Junta Comercial restabelecer a prestação regular de seus serviços. O inciso II estipula, por seu turno, que a exigência de arquivamento prévio de ato para a realização de emissões de valores mobiliários e para outros negócios jurídicos fica suspensa a partir de 1º.3.2020, devendo o arquivamento ser efetuado no prazo de 30 (trinta) dias contado da data em que a respectiva Junta Comercial restabelecer a prestação regular de seus serviços.
b.3 A permissão para a realização de assembleias inteiramente digitais, com voto e participação a distância
O art. 8º da lei 14.030 acrescentou o art. 43-A e respectivo parágrafo único à LCoop, permitindo a realização de assembleias inteiramente digitais nas sociedades cooperativas, com a participação e votação dos "associados" a distância, nos termos de regulamento do órgão competente do Poder Executivo federal.
O art. 9º alterou a redação do parágrafo único do art. 121 da LSA para determinar que a participação e votação a distância em assembleia geral obedecesse à regulamentação não só da CVM, mas também "do órgão competente do Poder Executivo federal".8 Alterou, também, o § 2º do art. 124, acrescentando ainda o § 2º-A. No primeiro, estipulou que, quando a assembleia não puder ser realizada no edifício da sede da companhia, por motivo de força maior, deverá efetivar-se em outro local, "desde que seja no mesmo município da sede" (ao invés de falar em "fora da localidade da sede", como dizia a redação anterior). No segundo, determinou que as companhias, abertas ou fechadas, poderão realizar assembleias de forma digital, nos termos de regulamentação da CVM e do órgão competente do Poder Executivo federal.
Finalmente, acrescentou o art. 1080-A e respectivo parágrafo único ao Código Civil, permitindo a participação e votação a distância nas sociedades limitadas, nos termos de regulamento do órgão competente do Poder Executivo federal e, outrossim, a realização de assembleias ou reuniões de forma digital, ajuntando também que devem ser respeitados "os direitos legalmente previstos de participação e de manifestações dos sócios e os demais requisitos regulamentares".
O signatário, esclareça-se, não fez nenhum juízo de valor sobre a realização de assembleias inteiramente digitais ou semi-presenciais9 e sobre a lei 14.030 em si, mas apenas suscitou alguns pontos de reflexão para que sejam considerados quando da edição das novas regulamentações que deverão ser efetuadas pelo DREI e pela CVM.
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1 Apesar da redação um pouco confusa, parece que o intuito do legislador foi o de dizer que as assembleias gerais, inclusive das associações (art. 59 do CC), poderia ser realizada até 30 de outubro de 2020 por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos.
2 O dispositivo causa certa perplexidade, pois naturalmente qualquer estatuto determina a competência da assembleia geral de acordo com o disposto no art. 122, já havendo, portanto, disposição estatutária em contrário.
3 Essa permissão, a nosso ver, não autoriza, por certo, a prorrogação do prazo para a realização de assembleias gerais ordinárias, que está regulado no art. 1º para a "sociedade anônima" em geral. Mas isso de certo modo parece estar em conflito com o disposto no parágrafo único do art. 3º.
4 Que têm reuniões de órgãos administrativos.
5 No que diz respeito a estas, devem ser aplicadas por analogia, em nossa opinião, as disposições da Lei 14.030 sobre as sociedades anônimas, até porque ambas são reguladas pela mesma lei (LSA).
6 O mencionado artigo dispõe o seguinte: "Art. 36. Os documentos referidos no inciso II do art. 32 deverão ser apresentados a arquivamento na junta, dentro de 30 (trinta) dias contados de sua assinatura, a cuja data retroagirão os efeitos do arquivamento; fora desse prazo, o arquivamento só terá eficácia a partir do despacho que o conceder." Entre os documentos mencionados no inciso II do art. 32, por exemplo, acham-se "os relativos à constituição, alteração, dissolução e extinção de firmas mercantis individuais, sociedades mercantis e cooperativas" (art. 32, inciso II, alínea "a"). Se o contrato de constituição de uma sociedade, portanto, for registrado além do prazo de 30 dias de sua assinatura, não há retroação dos efeitos do arquivamento: a sociedade não adquire personalidade jurídica, a não ser a partir do despacho que conceder o arquivamento. Submete-se, até então, ao regime da sociedade em comum, na qual todos os sócios são solidariamente responsáveis pelas obrigações sociais (cf. arts. 985 c/c 986 e 990 do Código Civil). Cf., a propósito dessa questão, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, A sociedade em comum, SP: Malheiros Editores, 2013, pp. 161-164. No mesmo sentido, Marcelo Andrade Féres, Sociedade em Comum, SP: Saraiva, 2011, p. 82.
7 Saliente-se que a lei 14.030 repristinou o art. 36 da lei 8.934/94, derrogando por sua vez, somente no tocante às sociedades empresárias, os §§ 1º e 2º do art. 1.151 do Código Civil (lex posterior), que tinham passado a disciplinar a matéria, e cujo teor é o seguinte: "Art. 1.151. (...) § 1º. Os documentos necessários ao registro deverão ser apresentados no prazo de trinta dias, contado da lavratura dos atos respectivos. § 2º. Requerido além do prazo previsto neste artigo, o registro somente produzirá efeito a partir da data de sua concessão." A essência dos dispositivos legais parcialmente derrogados é, porém, como se vê, a mesma do dispositivo repristinado.
8 Parece que aqui a lei quis se referir ao poder regulamentar do DREI no tocante às companhias fechadas.
9 Sobre toda essa problemática, consulte-se, com proveito, a tese de doutorado de João Pedro Barroso do Nascimento, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e em vias de publicação pela editora Quartier Latin.
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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é livre-docente de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Professor associado e ex-chefe do Departamento de Direito Comercial da USP. Advogado em São Paulo.