A lei 14.030/20 e os desafios nas deliberações de sociedades anônimas
A Assembleia Geral Ordinária (AGO) é um importante mecanismo de regulação das relações entre acionistas e companhias e tem como competência, além da eleição e tomada de contas dos administradores, a deliberação sobre as demonstrações financeiras e destinação do lucro líquido do exercício, com a consequente determinação sobre distribuição de dividendos.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Atualizado às 09:36
Parte substancial das companhias brasileiras possui em seus estatutos a previsão de encerramento do exercício social em 31 de dezembro, e, nesses casos, o prazo para realização das assembleias gerais ordinárias encerrar-se-ia no último mês de abril, conforme a regra do artigo 132 da lei 6.404/76.
A Assembleia Geral Ordinária (AGO) é um importante mecanismo de regulação das relações entre acionistas e companhias e tem como competência, além da eleição e tomada de contas dos administradores, a deliberação sobre as demonstrações financeiras e destinação do lucro líquido do exercício, com a consequente determinação sobre distribuição de dividendos.
O atual cenário de crise desafia a regular realização das AGOs, tanto pelo aspecto da forma, em razão da dificuldade de reunião presencial dos acionistas, quanto pela substância, em especial na aprovação, de modo definitivo, de matérias sensíveis à empresa, como a destinação de seus resultados.
No último dia 30 de Março, foi publicada a medida provisória 931/20, que, dentre outras disposições, previa flexibilizações acerca das Assembleias Gerais Ordinárias (AGOs) de sociedades anônimas e outros tipos societários1, posteriormente convertida na lei 14.030/20, com alterações em seu texto
Para as companhias cujo exercício social encerrou-se no último 31 de dezembro2, o prazo para a realização da AGO foi estendido por mais 3 (três) meses, totalizando 7 (sete) após o encerramento do exercício social3, mas permanecem desafiando a regular realização de atos que exijam concentração presencial de pessoas.
Além das referidas regulações transitórias, a medida provisória alterou dispositivos do Código Civil, da Lei das Cooperativas e da Lei das Sociedades por Ações para permitir a participação e manifestação de voto à distância por sócios e associados, sem contudo mencionar a possibilidade de realização do ato de forma integralmente digital, senão para companhias abertas, conforme instruções da CVM.
A propósito de regulamentar o tema, a instrução normativa 79/20 do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), passou a admitir tanto assembleias puramente digitais quanto um modelo misto, pelo qual a manifestação de voto pode ocorrer: (I) no local físico do conclave, (II) mediante envio de boletim de voto, (III) por atuação remota, via sistema eletrônico.
Nesse contexto, surgiu divergência, ressaltada por Marcelo von Adamek4, no sentido de que o texto da Medida Provisória expressamente distinguia as hipóteses de "participação e votação à distância" e "assembleias digitais", permitindo esta última apenas para companhias abertas. Assim, a normativa editada pelo DREI teria disposto de forma diversa, criando hipótese de realização de assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas em ambiente exclusivamente digital. Embora seja clara a necessidade de modernização e as boas intenções materializadas pela Instrução Normativa nesse sentido, o fato é que a ampliação e/ou desvio do escopo da regulamentação gera potenciais conflitos societários e o risco de maior judicialização. Ao lado da instabilidade instrumental, fruto da experimentação não planejada, encontra-se a instabilidade jurídica, que poderá fomentar oposição técnica entre acionistas5 nas sociedades anônimas fechadas.
Não bastasse esse imbróglio, a divergência restou potencializada pela publicação da lei 14.010/20, cujo artigo 5º indica a possibilidade de realização de assembleias gerais por meio eletrônico até 30 de outubro de 2020, independentemente de previsão nesse sentido nos atos constitutivos6. Contudo, muito embora o dispositivo esteja albergado sob o título "Das Pessoas Jurídicas de Direito Privado", remete expressamente ao artigo 59 do Código Civil, o qual trata tão-somente de associações, abrindo margem para uma interpretação, a contrario sensu, de que o mecanismo não seria cabível em estruturas societárias. Talvez se explique o título pelo fato de que o artigo 4º, da referida lei7 expressamente tratava de sociedades em geral, mas restou vetado sob a justificativa de evitar potencial conflito com a MP 931/208.
Ao converter a medida provisória, o Congresso Nacional acabou incluindo no texto da lei 14.030/20 a possibilidade expressa de participação e votação à distância em assembleia tanto para as companhias abertas, quanto fechadas, buscando harmonizá-la, no ponto, à IN 79/20 do DREI.
Embora a redação final da lei tenha de fato restado melhor compatibilizada com a normativa do DREI, nem toda controvérsia resta completamente elidida. É importante observar que textos de medidas provisórias alterados quando da conversão em lei, em regra, irradiam efeitos somente para os atos praticados a partir de sua publicação, contendo carga de eficácia ex nunc, não convalidando eventuais vícios criados sob a vigência do texto original9.
Outro aspecto da lei 14.030/20 relacionado à necessidade de adequação a este momento extraordinário diz respeito à distribuição de resultados. Conforme previsão, a decisão pode ser tomada pelos administradores (Conselho de Administração ou, na sua inexistência, Diretoria)10, na forma da regulação de dividendos intermediários já previsto no art. 204 da lei 6.404/76. Tal hipótese era possível anteriormente, desde que autorizado no Estatuto11. A modificação essencial consiste em permitir que os Diretores ou Conselheiros deliberem sobre declaração de dividendos "independentemente de reforma do estatuto social".
A medida provisória ora convertida em lei parece ter a intenção de conferir agilidade nos processos decisórios, mas, naturalmente, não foi pensada para as mais variadas hipóteses de pactos parassociais que as sociedades podem elaborar, fruto da autonomia privada. Daí que o design de regras societárias elaborado para determinada companhia pode abrir espaço para conflito de interesses, notadamente nos casos em que administradores profissionais sejam bonificados pelos resultados alcançados - a depender das exatas regras postas no caso concreto12.
O silêncio estatutário sobre a possibilidade de distribuição intermediária de dividendos pode ser proposital e, como tal, não deve ser desconsiderado. A lei 14.030/20, no afã de dinamizar a alocação dos resultados, pode tanto facilitar recebimentos pelos acionistas quanto gerar eventuais conflitos destes entre si ou perante os administradores e a própria companhia.
A simples distribuição de resultados do exercício anterior, analisada isoladamente, seria plenamente possível, visto que não havia, naquele período contábil, uma crise a contingenciar. Mas, as regras societárias vigentes impõem que se observe o melhor interesse da companhia e, em especial, a intangibilidade do capital social13, que pode exigir, em concreto, a análise contextualizada com o exercício social subsequente. Portanto, apresenta-se um cenário complexo que exige a tomada de decisões estratégicas, com a vantagem da agilidade dos meios introduzidos para as deliberações societárias.
O contexto dos breves aspectos mencionados neste texto indicam que as iniciativas legislativas possuem escopo de enfrentar problemas sérios e urgentes decorrentes da pandemia, com o potencial reflexo indesejável de criar espaço de controvérsia nas relações societárias.
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1 Não é objeto deste artigo, mas também ocorreu alteração expressa para deliberação em sociedades limitadas e cooperativas. Demais tipos societários não foram objeto de alteração específica. Igualmente, modalidades híbridas de exercício de atividade econômica, como o condo-hotel, que podem precisar de deliberações urgentes, não receberam tratamento específico.
2 A Medida Provisória apenas excepcionou o lapso temporal para a ocorrência da AGO apenas nos casos de exercícios sociais que se encerrem entre 31/12/19 e 31/3/20. Embora tal regra abranja a maioria dos casos, nos casos em que a sociedade anônima tenha o fim do seu exercício social dias ou semanas antes (por capricho ou alguma razão prática específica) estará obrigada a realizar a deliberação durante a pandemia, se não realizada antes. Tais implicações talvez impeçam o próprio encerramento das demonstrações financeiras em certos casos, mesmo que a MP ora permita a deliberação à distância como instrumento facilitador e que remanesce para após o período pandêmico.
3 MP 931/20, Art. 1º A sociedade anônima cujo exercício social se encerre entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020 poderá, excepcionalmente, realizar a assembleia geral ordinária a que se refere o art. 132 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, no prazo de sete meses, contado do término do seu exercício social.
4 ADAMEK, Marcelo. Companhias abertas à parte, assembleias virtuais são realidade no Brasil? 2/5/20.
5 Neste ponto, considerando que a maioria das sociedades brasileiras possuem controladores bem definidos, haverá espaço real para conflitos entre sócios majoritários em contraposição aos eventuais minoritários que se encontrem insatisfeitos com as deliberações encaminhadas.
6 Lei 14.010/20, Art. 5º A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica.
7 Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado referidas nos incisos I a III do art. 44 do Código Civil deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30 de outubro de 2020, durante a vigência desta Lei, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais.
8 E foi referido expressamente nas razões de veto.
9 Vide julgamento da ADI 4.049 MC, rel. min. Ayres Britto, julgada em 5-11-2008, DJE de 8/5/09.
10 MP 931/2020, Art. 2º Até que a assembleia geral ordinária a que se refere o art. 1º seja realizada, o conselho de administração, se houver, ou a diretoria poderá, independentemente de reforma do estatuto social, declarar dividendos, nos termos do disposto no art. 204 da Lei nº 6.404, de 1976.
11 Lei 6.404/1976, Art. 204. A companhia que, por força de lei ou de disposição estatutária, levantar balanço semestral, poderá declarar, por deliberação dos órgãos de administração, se autorizados pelo estatuto, dividendo à conta do lucro apurado nesse balanço. § 2º O estatuto poderá autorizar os órgãos de administração a declarar dividendos intermediários, à conta de lucros acumulados ou de reservas de lucros existentes no último balanço anual ou semestral.
12 A crise de 2008 fez transparecer um grande desalinhamento de interesses nas bonificações de determinadas sociedades americanas que apresentavam prejuízos bilionários, mas distribuíam bônus milionários para seus administradores, como se houvesse benefício merecedor de recompensa.
13 "O princípio da intangibilidade do capital social impede a distribuição de dividendos se a sociedade não produziu lucros, tendo em vista a proteção de terceiros (credores). A lei vigente mantém o princípio determinando que os dividendos, ainda que fixos ou cumulativos, não poderão ser distribuídos em prejuízo do capital social (atual § 3º deste art. 17, com redação dada pela Lei n. 10.303/2001)." CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 231)
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*Gabriela Wallau é presidente da Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF). Professora adjunta de Direito Empresarial na PUCRS. Doutora em Direito Privado pela UFRGS. Sócia em Estevez Advogados.
*André Fernandes Estevez é diretor executivo da Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF). Professor adjunto de Direito Empresarial na PUCRS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Sócio em Estevez Advogados.