Da prestação de contas do advogado ao cliente
O atual Código de Ética e Disciplina da OAB continua a exigir prévia autorização do cliente ou previsão contratual para que o advogado possa compensar ou descontar os honorários contratados.
terça-feira, 21 de julho de 2020
Atualizado às 16:46
É próprio do exercício da advocacia lidar com valores que pertencem ao cliente.
Há várias situações em que isso ocorre. Tomemos, como exemplo, o recebimento de indenização por conta do cliente. Nas ações condenatórias, é comum que o valor pertencente ao constituinte, pago pela parte adversa, seja levantado pelo advogado. Em ações dessa natureza, é habitual a transferência de recursos do cliente ao advogado para o pagamento de custas processuais, honorários de perito, entre outras despesas. Há casos, até mesmo, em que o advogado adianta parte delas. Além disso, usualmente a indenização é paga pela parte contrária junto com honorários de sucumbência, verba que pertence ao advogado (art. 23 da lei 8.906/94). Acrescente-se que, com certa frequência, os honorários advocatícios são contratados "ad exitum", com adoção da cláusula "quota litis" (art. 50, Código de Ética e Disciplina da OAB). Nesse caso, o advogado tem participação no proveito econômico do cliente.
As circunstâncias acima bem revelam os deveres ético e jurídico do advogado agir com transparência; de prestar informações claras e precisas ao cliente sobre a movimentação destes recursos.
E conforme dispõe o artigo 12, do Código de Ética e Disciplina da OAB, recai sobre o advogado a obrigação de prestar contas ao cliente, o que deve fazer de forma pormenorizada.
Neste artigo, analisamos essa obrigação, cujo descumprimento constitui grave infração disciplinar.
Dos contornos da relação entre advogado e cliente
Segundo o artigo 653, do CC, opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. O mandato judicial subordina-se às normas constantes da legislação processual civil, com aplicação supletiva daquelas previstas no CC (art. 692).
Na relação com o cliente e na defesa de seus interesses, o advogado deve agir de acordo com a lei 8.906/94 - denominada Estatuto da Advocacia - e segundo os preceitos do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (CED).
No que toca ao objeto deste trabalho, é importante enfatizar a necessidade de que a relação cliente-advogado seja estabelecida de forma clara, mediante contrato escrito. É essa a orientação prevista no artigo 48 do CED.
A experiência demonstra que grande parte dos processos ético-disciplinares que envolve prestação de contas tem origem, justamente, no descuido de parcela dos profissionais no momento da contratação; tem origem na ausência de contrato escrito.
E alguns cuidados precisam ser observados na contratação.
O objeto e a extensão do trabalho devem ser especificados no contrato; o documento deve ser preciso quanto aos honorários e a forma de seu pagamento; deve regular o pagamento das custas, despesas inerentes ao exercício do trabalho e serviços de outros profissionais, tais como assistentes técnicos e correspondentes.
É importante considerar que a teor do disposto no artigo 48, § 2º., do Código de Ética e Disciplina da OAB, a compensação ou desconto dos honorários contratados depende de prévia autorização do cliente ou previsão contratual. Essa estipulação é de fundamental importância e assume maior relevância nas relações que adotam a cláusula "quota litis". Trata-se da cláusula que estabelece honorários advocatícios sobre o proveito econômico resultante para o cliente, muito comum na advocacia trabalhista.
Por outro lado, não obstante o artigo 23 do Estatuo da Advocacia estabeleça que os honorários de sucumbência pertencem ao advogado, é aconselhável inserir no contrato previsão nesse sentido, além de explicar seu significado ao cliente. Com certa frequência nos deparamos com a dificuldade do leigo em compreender a diferença entre honorários contratuais - aqueles convencionados em contrato - e honorários de sucumbência - aqueles fixados pelo Juízo com base no resultado da causa (art. 85, NCPC).
São cautelas que, quando adotadas, evitam problemas na conclusão do contrato.
Da injustificada recusa em prestar contas ao cliente
Conforme leciona Adroaldo Furtado Fabrício, prestar contas "significa fazer alguém a outrem, pormenorizadamente, parcela por parcela, a exposição dos componentes de débito e crédito resultantes de determinada relação jurídica, concluindo pela apuração aritmética do saldo credor ou devedor, ou de sua inexistência"1.
A obrigação do advogado em prestar contas ao cliente, como vimos, está prevista no artigo 12 do Código de Ética e Disciplina da OAB, diploma que obriga advogados, estagiários e escritórios de advocacia (artigo 33, da lei 8.906/94).
No decorrer da execução dos serviços, o advogado deve prestar contas sempre que o cliente solicitar. Na conclusão dos serviços, se o advogado tiver recebido recursos do cliente ou de terceiros por conta dele, as contas são obrigatórias.
Embora o Estatuto da Advocacia nada diga quanto ao método de elaboração das contas, parece-nos claro que o advogado deve expô-las no formato contábil, demonstrando, em ordem cronológica, o histórico de recebimentos e pagamentos. As contas devem ser instruídas com documentos que justifiquem os lançamentos.
A retenção dos honorários de sucumbência é permitida. Isso porque, o artigo 22 do Estatuto da Advocacia prevê que "a prestação do serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionais, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência". O artigo 23, do mesmo diploma legal, dispõe que "os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença, nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor". Assim, por se tratar de verba que pertence ao advogado, os honorários de sucumbência podem ser separados e descontados do valor a ser repassado ao cliente.
Nos processos judiciais, porém, nem sempre é possível obter, de uma só vez, a totalidade do crédito que cabe ao cliente. Muitas vezes os pagamentos são parciais, decorrentes de penhoras realizadas nas contas da parte adversa. Nesse caso, ao optar por cobrar os honorários de sucumbência junto com o crédito do cliente - e considerando a hipótese de constrição inferior ao valor global devido -, a retenção dos honorários deve ser proporcional, para que não haja prejuízo ao constituinte. De outro modo, o advogado estará privilegiando o seu crédito em detrimento do crédito de seu cliente.
Por outro lado, conforme o artigo 48, § 2º., do Código de Ética e Disciplina da OAB, os honorários contratados ou convencionais só podem ser compensados ou descontados se houver prévia autorização ou previsão contratual. Daí a importância, como salientamos, da contratação por escrito. Caso o contrato também preveja que o advogado antecipe despesas para serviços auxiliares, custas e emolumentos, o advogado poderá reter o respectivo valor quando prestar contas (art. 48, § 2º., CED).
Não são raras as situações em que o advogado perde contato com o cliente. Vale lembrar que alguns processos judiciais duram mais de uma década. Após as indispensáveis diligências para localizá-lo, aconselha-se o advogado a depositar o valor corrigido em nome do cliente, seguindo o procedimento previsto no artigo 539 do CPC (consignação em pagamento).
A prestação de contas, como já dissemos, deve ocorrer sempre que solicitada pelo cliente e, na hipótese de conclusão ou desistência da causa, imediatamente após o término do mandato.
A injustificada recusa do advogado em prestar contas configura a infração disciplinar prevista no artigo 34, XXI, da lei 8.906/94. Diz o artigo, textualmente, constituir infração disciplinar "recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por conta dele".
As sanções disciplinares previstas no Estatuto da Advocacia consistem em censura - que pode ser convertida em advertência, sem registro nos assentamos do inscrito -, suspensão, exclusão e multa (art. 35, caput, lei 8.906/94).
Para as infrações descritas nos incisos XVII a XXV do artigo 34, o Estatuto prevê a pena de suspensão, que também se aplica àqueles que reincidem em infração disciplinar.
Portanto, a pena para o advogado que se recusa a prestar contas é a suspensão do exercício da advocacia em todo o território nacional.
O prazo da suspensão varia entre trinta dias a doze meses. É fixado de acordo com critérios previstos no próprio Estatuto, os quais devem ser sopesados pelos julgadores. São eles: a circunstância de a falta ética ter sido cometida na defesa de prerrogativa profissional, a primariedade do representado, o exercício assíduo e proficiente de mandato ou cargo em órgão da OAB, a prestação de relevantes serviços à advocacia ou à causa pública, o grau de culpa, as circunstâncias e as consequências da infração.
Para a hipótese específica de injustificada recusa em prestar contas, a legislação fixa condição especial: a suspensão do advogado perdurará até a satisfação integral da dívida. Daí se infere que, após o devido processo ético-disciplinar e considerando os critérios de individualização da pena, o julgador deverá fixar um prazo mínimo de suspensão (entre trinta dias e doze meses), prorrogando-o até o adimplemento dos valores devidos pelo advogado (art. 37, § 2º., do Estatuto da Advocacia).
Portanto, se na fixação da pena o Tribunal aplicar o prazo mínimo de suspensão (30 dias), esta perdurará até que o advogado preste contas. Se o fizer no primeiro dia do prazo, ainda assim só poderá voltar a exercer a advocacia após o decurso de 30 dias.
O fato do advogado prestar contas quando já formalizada a representação perante a OAB, segundo entendo, não serve para apagar a falta ética, embora deva ser considerado na dosimetria da pena.
Observe-se, por fim, que a aplicação da pena de suspensão, por três vezes, pode implicar na exclusão do advogado dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
Do Processo Disciplinar
Os Tribunais de Ética e Disciplina integram a estrutura dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. A eles é atribuída a função de julgar os processos disciplinares que envolvam advogados, escritórios de advocacia e estagiários regularmente inscritos na OAB.
A competência para julgar determinado processo é do Tribunal de Ética e Disciplina do Conselho Seccional em cuja base territorial tenha ocorrido a infração. Se advogado inscrito no Ceará, por exemplo, comete infração disciplinar na Comarca de São Paulo, seu julgamento compete ao TED da OAB/SP. Essa regra não se aplica, apenas, se a falta for cometida perante o Conselho Federal.
O processo disciplinar é instaurado de ofício ou mediante representação do interessado. Denúncias anônimas não são admitidas.
Recebida a representação, cabe ao relator designado por sorteio emitir parecer, propondo a instauração do processo ou seu arquivamento liminar.
O Presidente do Conselho ou do Tribunal de Ética e Disciplina, nos termos do parecer ou de fundamentos que venha a adotar, declara instaurado o processo disciplinar ou determina o arquivamento da representação.
O representado, em qualquer hipótese, será notificado para apresentar defesa prévia no prazo de 15 dias. Se revel, ser-lhe-á nomeado defensor dativo. Consoante Resolução 9/16 do Conselho Federal da OAB, na contagem dos prazos devem ser computados apenas os dias úteis.
Partes e testemunhas poderão ser ouvidas em audiência de instrução. Pode o relator, também, determinar a realização de diligências que entender necessárias.
Concluída a instrução, o relator emitirá parecer preliminar de enquadramento legal dos fatos, tipificando a conduta.
Em seguida, representante e representado são intimados para apresentar alegações finais, após o que um relator escolhido por sorteio é designado para proferir voto.
Na sessão de julgamento, as partes podem sustentar oralmente pelo prazo de 15 minutos, o que se dá após a leitura do voto pelo relator. Como se vê, diferentemente do que ocorre nos procedimentos regulados pelos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, no TED a sustentação oral ocorre após a leitura do relatório e voto pelo relator.
Após eventual sustentação oral, são colhidos os votos dos demais integrantes do Tribunal.
O julgador que divergir do voto do relator, ainda que vencido, deverá apresentar os fundamentos da divergência em voto escrito ou em transcrição na ata de julgamento. O autor do voto divergente que tenha prevalecido deverá figurar como redator para o acórdão.
Contra o acórdão do Tribunal de Ética e Disciplina cabe recurso ao Conselho Seccional. O recurso suspende os efeitos do acórdão.
O prazo para interposição de qualquer recurso no processo disciplinar é de 15 dias. Igual prazo se aplica para contrarrazões.
Contra acórdão do Conselho Seccional, o Estatuto da Advocacia prevê recurso ao Conselho Federal. O recurso é cabível quando a decisão do Conselho Seccional não tenha sido unânime ou, sendo unânime, contrariar a Lei no. 8.906/94, decisão do Conselho Federal ou de outro Conselho Seccional e, ainda, o Regulamento Geral, o Código de Ética e Disciplina e os Provimentos.
Até o seu término, o processo disciplinar tramita em sigilo, com acesso restrito às partes, aos seus defensores e à autoridade judiciária competente.
Por fim, é importante destacar a possibilidade de revisão do processo disciplinar. A revisão é admitida nas hipóteses de erro de julgamento ou condenação baseada em prova falsa. A competência para processar e julgar o processo de revisão é do órgão do qual emanou a condenação final, ou seja, daquele que por último apreciou o mérito da representação.
Além da revisão, o Estatuto da Advocacia e o CED também admitem a reabilitação daquele que tenha sofrido qualquer sanção disciplinar. O pedido de reabilitação pode ser apresentado um ano após o cumprimento da sanção. A competência para processar e julgar a reabilitação é do Conselho Seccional em que tenha sido aplicação a sanção. Nos casos de competência originária do Conselho Federal, cabe a ele julgar o processo. Além do requisito temporal - decurso de um ano do cumprimento da sanção -, o requerente deve fazer prova de bom comportamento no exercício da advocacia e na vida social. Para tanto, deverá instruir o pedido com certidões emitidas pela própria OAB e por órgãos do Poder Judiciário. Quando a sanção disciplinar resultar da prática de crime (art. 34, XXXVIII, Lei no. 8.906/94), a reabilitação fica condicionada, também, à correspondente reabilitação criminal.
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DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. São Paulo: Saraiva, 1993.
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil; Lei no. 5.896, de 11 de janeiro de 1973, vol. VIII, Tomo III, artigos 890 a 945, 6ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994.
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1 - Comentários ao Código de Processo Civil; Lei no. 5.896, de 11 de janeiro de 1973, vol. VIII, Tomo III, artigos 890 a 945, 6ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 285.
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* Luís Borrelli é sócio do escritório Borrelli & Ghirardi Advogados, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e relator da IV turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.