MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O que faltou falar sobre o artigo de Hélio Schwartsman

O que faltou falar sobre o artigo de Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman, em seu recente artigo publicado na Folha de S. Paulo, ao dizer que a morte de Bolsonaro lhe parecia uma boa ideia, apelou, tal como o dirigente do clube de Bussunda, à estratégia de atiçar a torcida.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Atualizado às 08:13

t

Durante uma entrevista ocorrida muito tempo atrás, o saudoso humorista Bussunda lembrou que, todo fim de ano, o presidente do clube de futebol para o qual torcia vinha a público e anunciava a contratação bombástica de uma estrela do futebol internacional.

Todos sabiam que a contratação não ocorreria. O intuito, claro, era de mexer com a torcida, mas, mesmo assim, os jornais do dia seguinte noticiavam o anúncio da contratação, e não a estratégia costumeira do dirigente.

De forma divertida, Bussunda criticava uma parcela da imprensa que, com a feroz velocidade dos nossos tempos, deixava-se levar pela pressa, e não pelo apuro. O humorista, sem se dar conta, mostrava um contorno cada vez mais comum de nosso comportamento social atual.

Hélio Schwartsman, em seu recente artigo publicado na Folha de S. Paulo, ao dizer que a morte de Bolsonaro lhe parecia uma boa ideia, apelou, tal como o dirigente do clube de Bussunda, à estratégia de atiçar a torcida. E como no exemplo bussundiano, as vozes mais diversas também saíram a campo para analisar o fato, e não a intenção do jornalista.

O rosário de opiniões sobre o tema pode ser resumido da seguinte forma: parte defende a liberdade de expressão de Schwartsman, parte defende a punição severa do jornalista, justificada no abuso de seu direito de escrever o que pensa.

A parte que defende a liberdade de expressão de Schwartsman é, quase sempre, a mesma que defende a punição severa dos que falam o que pensam a respeito das nossas instituições democráticas. A parte que defende a liberdade de expressão dos que falam o que pensam a respeito de nossas instituições democráticas é, quase sempre, a mesma que defende a punição severa do jornalista.

Hélio mexeu com a torcida que, em ciranda, se viu amando os que odeia e odiando os que ama, expondo a nu a fragilidade daquilo que entendemos como democracia e a seletividade da aplicação daquilo a que chamamos por liberdades de expressão.

A confusão é bem-vinda, mostra a urgência de uma escolha: ou nos filiamos à visão de que as liberdades de expressão devem alcançar a opinião contundente, incômoda, antidemocrática, mórbida ou burra, ou então as liberdades de expressão não significarão mais nada, haja vista defendermos de dia, como direito, o que atacamos de noite, como ilícito.

Certa vez, em meio à efervescência dos festivais dos anos 60, Caetano Veloso voltou-se contra a plateia, que se contradizia em vaias e aplausos, e vociferou que aquela juventude queria matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem.

É algo mais ou menos assim que nos cerca a respeito do tema das liberdades. Com uma diferença, que é a derradeira coisa que faltou falar sobre o artigo de Schwartsman: na época dos festivais, as vaias, mesmo contraditórias, eram um sinal de vigor, de explosão das divergências.

O que vemos hoje é um desejo de implosão do diverso, de emudecimento do contrário, por meio de todo e qualquer artifício: lei de segurança nacional, inquéritos de ocasião, criminalização do jornalismo e opiniões que clamam pela intimidação, pelo calabouço alheio.

E, nesse ponto, com o perdão do trocadilho, Hélio errou sua pontaria, não por dizer o que pensa, mas por pensar que a morte de Bolsonaro, ainda que alegórica, poderia ser benéfica.

O banimento, a exclusão, a extinção do pensamento do outro, por pior que o outro seja, será sempre, ao fim e ao cabo, a extinção do nosso próprio pensamento, que, apagado no escuro da voz única, nunca poderá sobreviver em algo minimamente parecido com uma democracia.

_________

t*André Marsiglia Santos é advogado, professor e palestrante formado em Direito e Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado do L+ Speech/Press.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca