Breve análise sobre os reflexos do pacote anticrime no Estatuto do Desarmamento
Apesar do objetivo declarado de tornar mais gravoso o tratamento penal de diversos crimes, a lei 13.964/19 tem nítidos contornos de novatio legis in mellius no que toca ao art. 16 da lei 10.826/03.
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Atualizado às 08:05
A atuação criminal prática exige conhecimento apurado sobre o direito intertemporal, em especial após o advento da lei 13.964/19, intitulada de Pacote Anticrime.
Por se tratar de princípio basilar do Direito Penal, a lei nova mais benéfica deve retroagir sempre, inclusive atingindo as sentenças condenatórias já transitadas em julgado. No último caso, a competência para a aplicação da novatio legis in mellius é do juízo das execuções penais, entendimento cristalizado na súmula 611 do STF.
Neste contexto, destacam-se as novas redações conferidas pela lei 13.964/19 à lei 10.826/03, o Estatuto do Desarmamento, e à lei 8.072/90, a Lei dos Crimes Hediondos.
Devemos nos recordar que, em 2017, a lei 13.497 atribuiu natureza hedionda aos crimes descritos no art. 16 da lei 10.826/03, que contemplava, àquela época, a posse ou porte ilegal de arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito.
Em 23 de janeiro de 2020, a lei 13.964/19 entrou em vigor e alterou a redação do caput do art. 16, para excluir a referência à arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido, passando a previsão legal correspondente a tais artefatos ao parágrafo 2º do mesmo art. 16, uma forma qualificada do crime, com penas abstratamente mais elevadas, nos patamares de 4 a 12 anos de reclusão. Porém, curiosamente, na redação do referido parágrafo 2º não temos menção aos acessórios ou munições, mas tão somente à arma de fogo de uso proibido.
Por sua vez, a lei 8.072/90 foi também alterada pelo Pacote Anticrime para prever como hedionda a conduta consistente na posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da lei 10.826/03.
Claramente, o legislador não adotou a melhor técnica. No art. 1º, parágrafo único, inciso II, faz menção unicamente à arma de uso proibido, mas a referência ao Estatuto do Desarmamento está incompleta, pois o novo caput do art. 16, conforme ressaltamos, contempla apenas as armas de fogo de uso restrito. Seria necessário, pois, mencionar expressamente no texto da lei 8.072 o parágrafo 2º do art. 16, em homenagem à necessária precisão em tema de norma penal incriminadora.
A partir do exposto, podemos extrair duas principais conclusões. Em primeiro lugar, as condutas descritas no art. 16, caput e parágrafo 1º, da lei 10.826/03, atinentes à arma de fogo, acessório e munição de uso restrito deixaram de ser hediondas. A inovação legislativa, por ser benéfica, deverá obrigatoriamente retroagir.
A segunda conclusão relaciona-se à natureza hedionda do crime previsto no art. 16, parágrafo 2º, do Estatuto do Desarmamento. Considerando que o dispositivo faz referência unicamente à arma de fogo de uso proibido, olvidando acessório ou munição, a posse ou o porte destes últimos, embora de uso proibido, não poderá receber a pecha da hediondez, sob pena de violação à estrita legalidade e diante da impossibilidade de analogia in malam partem no Direito Penal.
Portanto, estamos diante de tema extremamente importante na atuação criminal prática. Apesar do objetivo declarado de tornar mais gravoso o tratamento penal de diversos crimes, a lei 13.964/19 tem nítidos contornos de novatio legis in mellius no que toca ao art. 16 da lei 10.826/03.
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*Michelle Tonon é defensora Pública do Distrito Federal. Professora de Direito Penal e Legislação Penal Especial no CP Iuris.