Só o bom senso não vai proteger as pessoas do mau uso dos dados
Autoridade nacional que regulará o uso dos dados dos brasileiros precisa de técnicos em seu conselho para transformar valores em práticas
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Atualizado às 12:26
O gasto dos brasileiros com serviços bancários cresceu 150% nos últimos 10 anos, segundo levantamento do Guiabolso. As discussões promovidas pelo Banco Central a fim de reverter esse quadro inclui o estímulo à concorrência via compartilhamento de dados entre as instituições financeiras, o chamado open banking.
O compartilhamento de dados permitiu, por exemplo, que o preço das viagens urbanas caíssem consideravelmente nos últimos anos por meio de aplicativos como Uber e 99. O deslocamento também ficou mais assertivo e seguro por meio do Waze e do Google Maps.
Se, por um lado, o compartilhamento de dados otimiza e barateia serviços, por outro, precisa ser moderado por elementos éticos para que não haja abuso das empresas em relação às informações dos consumidores. Afinal, a liberdade e a privacidade não podem ser prejudicadas na justa e construtiva corrida pela criação de novos negócios e aprimoramento de práticas de mercado.
Mas é preciso incluir algo novo na discussão sobre o uso dos dados para promover a inovação: só o bom senso não basta para evitar excessos. É preciso que as autoridades criadas no Brasil e no mundo para regular essa relação tenham conhecimento técnico para acompanhar as mudanças de paradigma.
No âmbito empresarial, as companhias devem incorporar a privacidade ao seu negócio, trazendo-a como um valor que irá dialogar com as bases do negócio, com as arquiteturas de TI. Para tanto, contam com as práticas de privacy by design, ou seja, a privacidade no centro do desenvolvimento de negócios e produtos.
Lacunas na LGPD
No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) representa não só um imenso avanço, como uma necessidade. Mas há, evidentemente, lacunas a serem preenchidas em seu texto. A lei ainda carece de um regulamento que imponha regras na formação do conselho da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que tem a missão de dar segurança jurídica à lei.
O conselho precisa guardar algumas das suas 23 cadeiras para pessoas com profundo conhecimento técnico. Caso contrário, por maior que seja a boa vontade em promover a ética no bojo da economia de dados, faltará o conhecimento especializado para transformar valores em práticas.
O rigor técnico necessário para transformar o bom senso em boas práticas não está reservado apenas aos cientistas de dados, mas exige a participação de profissionais das diversas áreas do conhecimento, capazes de indicar os limites sociais, econômicos, éticos e jurídicos do compartilhamento de dados e das novas tecnologias como um todo.
Nesse contexto, os setores responsáveis por manipular o maior número de dados precisam integrar a discussão para que sejam não só objetos do escrutínio público, mas também cases de aplicação da lei para os demais setores da economia nacional.
Comunicação social
A inclusão de empresas que movimentam uma enorme massa de dados permitirá à ANPD ampliar o seu conhecimento sobre como as empresas podem usar os dados dos cidadãos de forma lícita e produtiva. E, por consequência, calibrar sua própria capacidade regulatória.
Um dos setores que mais movimenta dados no mundo é o da Comunicação Social, com especial destaque para as plataformas digitais. O marketing digital, por exemplo, responsável por otimizar a oferta de produtos aos consumidores por meio da análise de dados, já representa quase 25% de todo o investimento em marketing no Brasil. Nos Estados Unidos, já está chegando à metade do total: 44% em 2018, segundo estudo sobre "Maturidade Digital" da consultoria BCG e do Google.
Com a discussão sobre a ética do uso dos dados no Brasil já disseminada entre poder público, sociedade civil e no meio empresarial, um grupo de empresas do setor de comunicação está dedicado a incluir no debate a fundamental necessidade de uma regulação técnica e eficiente de captação, armazenamento e uso das informações no âmbito digital.
Com a finalidade de atender as exigências da LGPD, essas empresas formaram a "Coalização da Comunicação Social", composta por 13 entidades1 representativas relacionadas à área de tratamento de dados, reunindo as principais atuantes das áreas de publicidade digital, marketing de dados e comunicação social.
Esse grupo procura evitar que os acertos da LGPD fiquem apenas no papel. Para tanto, cria uma uniformidade de ação nas mais de 60 empresas que compõem a coalização. Garantindo, dessa maneira, segurança jurídica e padrão de atuação. Essa iniciativa tem o potencial de estimular outros setores da economia a sistematizar a implementação da cultura da inovação combinada à proteção dos dados.
Um dos riscos essenciais de uma composição pouco técnica da ANPD é a criação de obrigações legais inconsistentes, que inviabilizem novos modelos de negócio. A autoridade nacional precisa, portanto, assumir uma dupla missão: garantir o uso legal dos dados dos brasileiros ao mesmo tempo em que permite e promove a criação de serviços baseados na inteligência de dados. Atender a apenas uma dessas necessidades será um impeditivo para que o Brasil caminhe definitivamente para a economia do século 21.
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1 ABEMD - Associação Brasileira de Marketing de Dados, a ABRADI - Associação Brasileira de Agentes Digitais, ABAP - Associação Brasileira de Agências de Publicidade, ABEP - Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas, ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, ABRACOM - Associação Brasileira das Agências de Comunicação, ABRAREC - Associação Brasileira das Relações Empresa-Cliente, AMPRO - Associação de Marketing Promocional, ANER - Associação Nacional de Editores de Revistas, ANJ - Associação Nacional de Jornais, APP BRASIL - Associação dos Profissionais de Propaganda, CNCOM - Confederação Nacional da Comunicação Social e FENAPRO - Federação Nacional das Agências de Propaganda
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*Vitor Morais de Andrade é presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos da Sociedade e Consumo - IPS. Presidente da Associação Brasileira de Relações Empresa-Cliente - ABRAREC. Coordenador geral do Departamento Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça - DPDC/SDE/MJ. Co-coordenador do Curso de Extensão de Direito na Economia Digital - COGEAE/PUC-SP. Representante da "Coalizão da Comunicação Social". Sócio do escritório Morais Andrade Leandrin Molina Advogados.
*Lygia Molina é expert nas áreas de Direito Civil e Direito Digital, com certificações internacionais em proteção de dados. Atua junto a grandes empresas de telecomunicação, comunicação, BPO, entre outros setores. Sócia do escritório Morais Andrade Leandrin Molina Advogados.