Os obstáculos para a advocacia da concorrência no sistema descentralizado de regulação proposto pelo novo marco regulatório do saneamento
Se os benefícios da adoção das melhores práticas para os gestores municipais forem inferiores aos custos políticos que eles terão que enfrentar para adotar as melhores práticas regulatórias e concorrenciais, a decisão natural do executivo municipal será a de contratar agências independentes que possam não acatar as orientações da ANA.
terça-feira, 14 de julho de 2020
Atualizado às 09:03
A acessibilidade a toda população brasileira à água potável e ao esgotamento sanitário é uma demanda antiga da sociedade, na medida em que 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada e 104 milhões não tem acesso ao esgotamento sanitário (quase metade da população).
Não obstante a lei 11.445/07 tenha reformulado as diretrizes nacionais e a política federal para o saneamento básico, criando marcos regulatórios do setor relativamente ao abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais, tendo sido considerada como um grande avanço à época, somente agora com a sanção do PL 4.162/19 se incluirá, dentro das atribuições da Agência Nacional de Águas - ANA, a responsabilidade pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento básico.
O autógrafo PL 4.162/191, que se encontra em fase de sanção presidencial, apresenta avanço inquestionável em termos de regulação e concorrência no setor de saneamento brasileiro, com inserção, principalmente, da análise do impacto regulatório em agências descentralizadas.
De acordo com o processo legislativo, a Agência Nacional de Águas, que é responsável pela regulação dos recursos hídricos, definirá as diretrizes da regulação do saneamento básico. A agência será a responsável por determinar diretrizes regulatórias do saneamento e cada agência regulatória descentralizada poderá ou não acatar as regras regulatórias propostas pela Agência Nacional de Águas (ANA).2 Obviamente que para ter acesso aos investimentos públicos federais, a agência descentralizada deverá se alinhar às normas federais estabelecidas.
No campo concorrencial, o novo marco regulatório do saneamento confirma a competência do SBDC para tratar de infrações à ordem econômica, trazendo, expressamente, um dispositivo que determina que toda escolha de empresa para conduzir o saneamento básico deve ser feita por intermédio de concessão de serviço público mediante processo licitatório, conforme previsto no art. 175 da Constituição Federal do Brasil.
Conquanto seja essa aprovação uma notícia importante e que deva ser comemorada, ela é apenas o pontapé inicial para que o objetivo central da universalização dos serviços públicos de saneamento básico seja atingido, com tarifas competitivas e sem custos demasiados para uns em detrimento dos outros, tendo como meta principal a adoção das melhores práticas concorrenciais.
O saneamento básico é de competência municipal e está envolto na falha de mercado denominada monopólio natural, uma vez que, dadas as características de elevado custo fixo e custo marginal muito próximo a zero, não permite que seja economicamente viável a existência de mais que uma empresa de saneamento no município, ou seja, em outras palavras, a construção de uma instalação de saneamento básico ao lado de outra fará com que ambas as instalações tenham lucros negativos.
A natureza estrutural do saneamento básico torna as diretrizes apontadas na regulação econômica a serem implementadas pela ANA ainda mais importantes quando o assunto é a concessão dos ativos de abastecimento de água à iniciativa privada, vez que se está diante da escolha de empresas privadas para explorarem os mencionados ativos por prazo de 30 anos.
Diferentemente do que acontece com setores onde não há falhas de mercado como o monopólio natural, a concorrência não se dá no mercado, mas sim pelo mercado, o que faz com que a competição entre as empresas se dê pelo direito de explorar um determinado ativo público por um prazo estabelecido e toda a relação de eficiência durante o período de concessão será resultado das regras de regulação econômica e não das empresas existentes no mercado.
Não é possível ao habitante de um determinado município fazer a escolha de ser abastecido pela empresa de saneamento de outro município. A inviabilidade na escolha do fornecedor de água por parte do consumidor torna o processo licitatório pela empresa fornecedora muito mais relevante para o consumidor final, pois a escolha dos representantes do Estado gera consequências sobre o bem-estar da população.
A função regulatória da licitação é a pedra angular para que o novo marco regulatório do saneamento seja exitoso e ofereça a concessão do serviço para empresas mais eficientes. O objetivo da função é produzir no processo licitatório o melhor desenho da escolha ex-ante (edital e contratos compatíveis com boas práticas concorrenciais) para que se tenha o melhor desempenho ex-post.
É no desenho ex-ante que a aplicação das boas práticas concorrenciais via mandato da advocacia da concorrência do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) é fundamental, uma vez que na regulação ex-post o exercício da advocacia da concorrência é muito mais custoso porque envolve monitoramento dos atos regulatórios da unidade regulada.
O novo marco regulatório inova ao inserir o instrumento que possibilita o acesso ao financiamento público para àquelas agências descentralizadas que aceitarem se submeter a regulação proposta pela ANA. A ideia com esse mecanismo é o de gerar incentivos para que os municípios busquem agências reguladoras que adiram as diretrizes da ANA e, consequentemente, sigam as melhores práticas regulatórias e da advocacia da concorrência implementada pelo SBDC.
No entanto, o mecanismo de incentivos proposto pode ser necessário, mas não é suficiente para fazer com que os municípios ingressem em agências com essas características, pois, se, por um lado, a possibilidade de acesso a financiamento federal tende a gerar incentivos para que um número maior de empresas se candidatem à licitação, por outro, o grau de exigência sobre o processo licitatório se amplia, principalmente pelo lado da advocacia da concorrência e limita as ações de voluntarismo que porventura possam surgir.
Dessa forma, se os benefícios da adoção das melhores práticas para os gestores municipais forem inferiores aos custos políticos que eles terão que enfrentar para adotar as melhores práticas regulatórias e concorrenciais, a decisão natural do executivo municipal será a de contratar agências independentes que possam não acatar as orientações da ANA.
Portanto, conquanto o novo marco regulatório do saneamento básico represente um salto qualitativo em termos de legislação regulatória e concorrencial, vez que estão presentes elementos para as boas práticas regulatórias e concorrenciais, essa é apenas uma condição necessária para que não surjam movimentos oportunistas nas escolhas das empresas nos certames. A condição de suficiência, que é a participação do SBDC no desenho ex-ante dos documentos do processo licitatório não está garantida e o resultado para a grande maioria dos municípios pode ser uma escolha voluntarista e não técnica das empresas prestadores de serviços de saneamento básico.
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2 Art. 4º-E.A ANA instituirá normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007.
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*Elvino de Carvalho Mendonça é consultor econômico do escritório Mendonça Advocacia e ex-conselheiro do CADE.
*Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça é sócia do escritório Mendonça Advocacia.