A pandemia justifica a realização de interrogatório de réu solto por videoconferência?
Em resposta ao questionamento proposto, a pandemia justifica o interrogatório por videoconferência exclusivamente no caso de réu preso, pois há uma "gravíssima questão de ordem pública", conforme previsto no art. 185, § 2º, inciso IV, do CPP.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Atualizado às 11:42
Para responder a esta pergunta, deve-se avaliar a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Portanto, em vez de defender o que pensamos, relataremos o que se pode esperar do STJ e do STF quando venham a enfrentar o tema, presumindo-se que decidirão com coerência aos seus precedentes.
Antes de tudo, insta salientar que ser apresentado à presença física do juiz é um Direito Fundamental e Humano (art. 5º da Convenção Americana de Direitos Humanos). Ademais, a Constituição consagra o devido processo legal (art. 5, inciso LIV), o que pressupõe que os atos processuais devem se pautar estritamente pela forma que a lei lhes dá, observando-se inclusive a designação do local em que deverão ocorrer.
O Código de Processo Penal é explícito ao determinar que os atos processuais ocorrerão nas sedes dos juízos e tribunais (art. 792) e que o acusado comparecerá "perante a autoridade judiciária" (art. 185) para ser interrogado. Sobre isso, adiante-se que, nas palavras do ministro Cezar Peluso, "em termos de garantia individual, o virtual não vale como se real ou atual fosse, até porque a expressão perante não contempla a possibilidade de interrogatório on-line" (HC 88.914, rel. min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJe 05/10/07).
Antes mesmo de sua inserção no CPP, tentou-se impor o interrogatório por videoconferência, inclusive com previsões em legislações estaduais. Todavia, o STF logo apontou a inconstitucionalidade formal dessas normas, ante a competência privativa da União para legislar sobre processo:
Entendo, em primeiro lugar, que a lei estadual viola flagrantemente a disciplina do art. 22, inciso I, da Constituição da República. Não se trata, pelo menos na minha compreensão, de procedimento, mas sim de processo. Tanto isso é verdade que a matéria está explicitamente regulada no art. 185 do código de Processo Penal. E, com isso, insisto, pelo menos no meu entender, a matéria é de processo, e, sendo de processo, a União detém o monopólio, a exclusividade para estabelecer a disciplina legal da matéria.
[...]
Enxergo, portanto, que a possibilidade de videoconferência, no caso, esbarra na disciplina constitucional brasileira, art. 22, I, e, ao meu sentir, é indispensável ir adiante com qualquer outro raciocínio, porque o ato praticado na lei assim concebida padece de evidente nulidade.
(HC nº 90.900, rel. min. Ellen Gracie, rel. para acórdão min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, DJe 23/10/09, p. 16-17)
Diante disso, a lei 11.900/09 alterou o CPP, disciplinando a possibilidade de realização de interrogatório por videoconferência de réu preso em determinadas situações (art. 185, § 2º1). Contudo, a oitiva de réu solto pelo meio tecnológico não está contemplada pela norma, que é explícita quanto ao seu cabimento apenas nos casos em que o indivíduo está preso.
O legislador não teve dúvidas sobre o escopo da referida lei, que, conforme se observa do parecer da CCJ no PLS 679/07 (que culminou na lei 11.900/09), se resumiu a reafirmar que o interrogatório pessoal é a "regra geral" e que, "em se tratando de réu preso", o juiz deve comparecer ao presídio ou, excepcionalmente, ouvi-lo por videoconferência. Leia-se:
Assim, a regra geral é o interrogatório na sede do juízo; em se tratando de réu preso, a regra é a presença do juiz no estabelecimento penal, como é hoje, salvo se não houver segurança adequada; ainda em relação ao réu preso, e aqui está a novidade, o juiz poderá, excepcionalmente, realizar o interrogatório por sistema de videoconferência, desde que a decisão esteja fundamentada sob certos parâmetros.2
Como se vê, não há previsão de interrogatório por videoconferência no caso de réu solto. Ademais, a ausência de tal previsão não pode ser suprida por leis estaduais, por normas do CNJ ou dos tribunais, conforme já decidido pelo STF, como visto, por força da competência privativa da União para legislar sobre direito processual penal.
Ainda assim, poderiam surgir as seguintes questões: seria possível a aplicação analógica do art. 185, § 2º, do CPP, aos casos de réus soltos? Mais: isso não seria justificado em virtude da pandemia e da necessidade de se evitar a prática de atos físicos?
Quanto ao primeiro questionamento, os Tribunais Superiores entendem que não é possível a aplicação analógica do § 2º do art. 185 do CPP a casos que não estejam explicitamente previstos na lei, sendo nulo o ato se existir prejuízo.
É isso que se depreende do entendimento da Terceira Seção do STJ que veda a realização de audiência de custódia por meio de videoconferência, por ausência de previsão legal (CC 168.522, rel. min. Laurita Vaz, DJe 17/12/19). Portanto, o dispositivo em comento não se aplica analogicamente nem mesmo aos casos de réus presos para além daqueles elencados no Código.
Além disso, o STJ também já consignou que o interrogatório por videoconferência de réu solto é causa de nulidade relativa. No HC 365.096, não houve declaração de nulidade apenas porque "não restou demonstrado qualquer prejuízo ao paciente. Ele foi acompanhado por seu advogado durante a audiência e, pelas informações prestadas, não consta qualquer inconformismo da defesa na realização do ato que tenha sido registrado na ata de audiência" (inteiro teor). Leia-se a ementa:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. CRIMES TRIBUTÁRIOS. RÉU SOLTO. INTERROGATÓRIO REALIZADO POR MEIO DE VIDEOCONFERÊNCIA. NULIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E SEUS CONSECTÁRIOS. NÃO OCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
I - A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso adequado, situação que implica o não-conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício.
II - Sendo causa de nulidade relativa, a realização de audiência por videoconferência, por si só, não configura inobservância do devido processo legal e seus consectários.
III - In casu, observa-se, portanto, que não restou demonstrado qualquer prejuízo ao paciente, tendo sido ele acompanhado por seu advogado durante a audiência e, pelas informações prestadas, não consta qualquer inconformismo da defesa na realização do ato que tenha sido registrado na ata de audiência.
Habeas Corpus não conhecido.
(HC 365.096, rel. min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 10/02/17)
Para além da circunstância de não haver prejuízo na realização da videoconferência, a única exceção ao interrogatório pessoal de réu solto é na hipótese de ele residir em local distante, de modo que o deslocamento inviabilize o devido exercício da defesa. Nesses casos, conforme jurisprudência do STJ, é possível a sua oitiva por carta precatória, como forma de concretizar o direito de defesa, sem possibilidade de imposição da medida com discordância do réu (HC 474.360, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 19/12/2018).
Por outro lado, insta salientar que, durante a suspensão dos atos presenciais, não há qualquer óbice à realização parcial da instrução de processos de réu solto, com a oitiva da vítima e das testemunhas por videoconferência - o que é até recomendado, ante o risco de esquecimento. Nessa situação, dever-se-á aguardar a volta da prática de atos físicos (ou uma mudança na lei) apenas para o interrogatório dos réus soltos.
Tal conclusão, decorrente dos precedentes citados, é justificada pelo fato de que o interrogatório é o único momento em que o réu tem a oportunidade de exercer plenamente a sua autodefesa, sendo que, "a comunicação não pode prescindir de tudo o que não é verbal mas acompanha o que é dissimulado por palavras. Quanto mais rica a relação 'in vivo', tanto mais eficaz o experimento. A percepção nascida da presença física não se compara à visual, dada a maior possibilidade de participação e o fato de aquela ser, ao menos potencialmente, muito mais ampla" (HC 88.914, rel. min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJe 05/10/07).Ocorre que, conforme a Resolução 322, de 1º de junho de 2020, do CNJ, já está autorizada a retomada de atos presenciais. Assim, só haverá óbice para a conclusão da instrução nos Tribunais que continuem trabalhando virtualmente, sendo que, mesmo nesses casos, não haverá prejuízo ao interrogatório dos réus presos, bem como dos réus soltos que concordarem ou não se insurgirem tempestivamente contra o ato (conforme HC 365.096, rel. min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 10/02/17). A instrução deverá ser suspensa apenas no momento do interrogatório de réus soltos que se insurjam tempestivamente contra a videoconferência, devendo ser retomada quando o Tribunal voltar a praticar atos presenciais, caso já não o tenha feito no presente.
Em resposta ao questionamento proposto, a pandemia justifica o interrogatório por videoconferência exclusivamente no caso de réu preso, pois há uma "gravíssima questão de ordem pública", conforme previsto no art. 185, § 2º, inciso IV, do CPP. Todavia, conforme entendimento jurisprudencial, essa norma não contempla ou se aplica analogicamente ao caso do réu solto, inexistindo lei que autorize a videoconferência, mesmo em situações excepcionais, como a atual. Assim, enquanto os Tribunais não retomarem as atividades presenciais (o que já é autorizado pelo CNJ), somente será possível o interrogatório de réus soltos quando houver anuência ou não existir discordância expressa e tempestiva. Ainda que se possa questionar o acerto teórico dessa conclusão, é a única coerente com os precedentes dos Tribunais Superiores sobre o tema.
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1 Art. 185, § 2º, do CPP:
§ 2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;
II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;
IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.
2 Parecer, elaborado pelo Senador Tasso Jereissati, disponível no link: clique aqui. Acesso em 01/07/2020.
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*Pedro Machado de Almeida Castro é mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados.
*Vinícius André de Sousa é pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados.