A pandemia do COVID-19 e a complexa análise pertinente à revisão dos contratos de consumo
Uma abordagem econômica para além do rompimento da base objetiva dos contratos de consumo.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
Atualizado às 07:50
A pandemia do COVID-19 surgiu como grande desafio para os operadores do direito na busca do equilíbrio entre o princípio da segurança jurídica e a higidez da função social dos contratos, mormente no âmbito consumerista.
Se por um lado há a necessária vinculação das partes às cláusulas contratuais (pacta sunt servanda), por outro surge como imperiosa a análise sobre o impacto gerado pela pandemia sobre as relações até então correntes.
Transferindo esse panorama para o quadro dos princípios e normas do Código de Defesa do Consumidor, vislumbra-se que o rompimento da base objetiva dos contratos pode implicar a revisão de seus termos, de modo a combater a onerosidade porventura existente. Isto é, a queda da renda familiar oriunda da paralisia econômica atrelada ao COVID-19 conduz à excessiva onerosidade no ajuste de vontades outrora vigente e consentâneo às normas do Direito do Consumidor (art. 6º, inciso V, do CDC), ensejando o seu redimensionamento quanto ao seu sinalagma.
A respeito dessa importante regra de proteção contratual, trago à baila a lição doutrinaria de Cláudia Lima Marques contida no Manual de Direito do Consumidor¹, em coautoria com o festejado Ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio Herman V. Bejamin e Leonardo Roscoe Bessa:
O inciso V do art.6º do CDC trata também da proteção contratual dos consumidores, do combate à onerosidade excessiva, assegurando direitos de modificação das cláusulas (não abusivas) 'que estabeleçam prestações desproporcionais' ou direito à sua revisão por quebra da base do negócio, em face de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Prevê o inciso V do art.6º do CDC a possibilidade da revisão judicial da cláusula de preço, que era equitativa quando do fechamento do contrato, mas que em razão de fatos supervenientes tornou-se excessivamente onerosa para o consumidor. (...)
A norma do art.6º do CDC avança, em relação ao Código Civil (arts. 478-480 - Da resolução por onerosidade excessiva), ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível. Apenas exige-se a quebra da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações, o desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi. O CDC, também não exige, para promover a revisão, que haja 'extrema vantagem para a outra' parte contratual, como faz o Código Civil (Art. 478).".
Diante dessa valiosa definição doutrinária, surge um verdadeiro ímpeto quanto a incidência do art.6º, inciso V, do CDC em face do verdadeiro caos social e econômico imposto pela pandemia do COVID-19, pois a hipótese fática amolda-se perfeitamente aos seus pressupostos.
Contudo, é preciso lembrar que a ordem econômica é formada não só pelo princípio da defesa dos direitos do consumidor, mas também pelo primado da livre concorrência, que se ajusta à necessária abordagem da função social da empresa.
Vale dizer, a atual crise assola diversos setores da cadeia de fornecimento de produtos e serviços, indicando assim que a interpretação restrita desse contexto sob o enfoque do CDC pode dar causa a verdadeiro desajuste na ordem econômica (Art. 170 da CF/88). Isso porque as relações negociais devem ser vistas como um sistema de vasos comunicantes, de modo que a simples pressão em favor dos consumidores pode entornar o "vaso" representado pelo ajuste financeiro das empresas fornecedoras de bens e serviços. Nesse contexto, como a sociedade encontra-se impactada pelos nefastos efeitos da paralisia econômica imposta, é imperiosa uma análise global do conflito de interesses com vistas a tutelar o direito dos consumidores, sem implicar a quebra de empresas, que possuem relevante função social e representam o grande berço da geração de empregos.
Do contrário, caso se admita a visão restrita e isolada sobre a quebra da base objetiva do contrato pelo enfoque individual do consumidor, empresas saudáveis e que compõem o mercado em uma livre concorrência podem ser impactadas e excluídas.
E, como um "efeito bumerangue", futuramente essa restrição do mercado poderá implicar um aumento do preço dos serviços e produtos, além da possível redução da qualidade, causados justamente pela restrição dos "players" atuantes em um dado setor, em prejuízo aos próprios consumidores.
Um bom exemplo acerca desse panorama, diz respeito aos contratos de prestação de serviços educacionais. Com algumas exceções, as empresas do ramo foram abruptamente compelidas a transferir todo o aparato escolar presencial para a esfera virtual, gerando investimentos não só com novas tecnológias, mas, também, na abordagem didática a ser implementada em aulas à distância. Além desse aspecto, observa-se a retirada das crianças que não se encontram no ciclo obrigatório da educação básica e que dificilmente se adaptam às atividades, frustrando parte da receita. Por outro lado, há uma diminuição de gastos com materiais de consumo, manutenção prediais e até com dispensa de pessoal. Contudo, em uma análise apriorística, esse cenário revela a existência de um impacto financeiro em prejuízo às instituições de ensino e não uma desoneração de custos.
Desta feita, se for imposta a redução das mensalidades por serviços que continuam a ser prestados de forma virtual com base no simples rompimento da base objetiva, haverá o fomento à quebra de tais empresas.
A propósito, em reportagem publicada na Folha de São Paulo de 07 de julho de 2020, há a notícia de que as escolas particulares já perderam mais de 10% (dez por cento) de seus alunos e, como reflexo, cerca de 300.000 (trezentos mil) docentes foram demitidos².
Sobre o tema em voga, é importante salientar que o c. Superior Tribunal de Justiça já se posicionou contrário à aplicação nua e crua do Código de Defesa do Consumidor em hipóteses nas quais há perigo de quebra do sistema (exceção da ruína). Nesse sentido, uma vez constatado um fortuito excepcional em contatos de longa duração e que represente verdadeiro risco ao sistema, haveria o dever de colaboração e boa-fé para o consumidor (AgRg no REsp n. 1.248.457-MG).
Em virtude desse quadro, as recomendações expedidas pelo Ministério Público de forma restrita ao plano de análise das regras do CDC afiguram-se prematuras, sendo mais adequada a instauração de inquérito civil para a abordagem criteriosa e global dos direitos coletivos stricto sensu envolvidos, sem prejuízo de eventual ação civil pública, nos termos do art. 81, inciso II, do CDC.
Como um bom exemplo, cito a linha de ação desenvolvida pelo Ministério Público de Santa Catarina³, o qual instaurou inquéritos civis para tratativa do imbróglio gerado pela pandemia, abordando não só a questão relativa eventual renegociação das mensalidades, mas, também, o possível incremento no custo.
MPSC recomenda a escolas particulares a adequação das mensalidades devido à pandemia
Estabelecimentos de ensino privados têm até o dia 15 de maio para apresentar medidas de adequação das mensalidades, de recomposição do calendário escolar e de compensações por atividades e serviços que deixam de ser oferecidos devido à suspensão das aulas presenciais, decretada para evitar o contágio pela covid-19.
Dentro dos inquéritos civis instaurados para apurar possíveis quebras no equilíbrio contratual entre escolas e pais ou responsáveis, a 29ª Promotoria de Justiça da Capital apresentou ao SINEPE, em reunião na manhã desta terça-feira (5/5), duas recomendações - uma para o ensino infantil e outra para o ensino dos níveis fundamental e médio - para que os estabelecimentos de ensino adéquem e negociem o pagamento das mensalidades e façam os ajustes de valores e a recomposição das aulas e atividades de forma transparente.
Dessa forma, foi concedida às entidades de ensino oportuna demonstração de aspectos objetivos quanto ao impacto dos custos gerados pela pandemia, além de estimular a composição entre os envolvidos.
Essa abordagem realizada pelo Parquet apresenta-se ajustada e proporcional aos interesses interessados, pois, como já dito, a ordem econômica é regida tanto pela defesa dos direitos dos consumidores, quanto pela tutela da livre iniciativa.
Entretanto, a tutela coletiva dos referidos interesses pode não ocorrer, de modo a pulverizar o conflito em diversas demandas judiciais propostas em face das mencionadas empresas de ensino.
E, no ensejo dessas lides, a urgência de uma tutela provisória é invocada pelo viés excepcional e transitório da pandemia, sendo essa apta ao rompimento base objetiva do contrato pela queda da renda auferida pelos responsáveis financeiros do contrato de ensino (plausibilidade do direito), situação essa apta implicar o redimensionamento das mensalidades. Em complemento, o perigo da demora do provimento final também estaria presente face à devida manutenção do mínimo existencial daquele núcleo familiar fortemente prejudicado pelo revés econômico imposto pela atual crise.
Defronte de tais contornos fáticos, a concessão da tutela de urgência aparenta ser medida adequada e necessária, mas constitui verdadeira armadilha à garantia da ordem econômica, como delineado alhures.
Portanto, é necessário atuar com cautela na apreciação liminar de tais pedidos, pois a tutela provisória inaudita altera pars constitui instrumento temerário face ao aspecto multifacetário da questão posta.
Nesse sentido, para que se tenha o mínimo de elementos coletados sobre as diversas faces do conflito, afigura-se prudente a concessão de um prazo de 5 (cinco) dias para que o fornecedor de serviços se manifeste a respeito do pedido liminar (art. 139, inciso VI do CPC) ou, até mesmo, a designação de uma audiência de justificação virtual. Mediante tais medidas, o fornecedor deverá trazer elementos objetivos aptos a influenciar o juízo sumário para o deferimento ou não da tutela provisória, evitando assim os efeitos deletérios sobre o provimento prematuro sobre questão de tamanha complexidade.
Sem prejuízo, destaca-se que a audiência de conciliação (virtual) deve ser vista como momento ímpar do processo, considerando que as partes possuem o dever de renegociar como consectário do princípio da boa-fé objetiva e do dever anexo de lealdade.
Ainda nesse plano da demanda individual, é importante lembrar a regra instituída pelo art.139, inciso X do CPC/15, que estabelece a incumbência de o magistrado oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública ou outros legitimados para a propositura de ação coletiva, quando verificar a existência de diversas demandas individuais de cunho repetitivo.
Essa inovação permite ao próprio Poder Judiciário realizar a provocação dos órgãos que possuem legitimidade extraordinária para a defesa do direito coletivo em tela, ante a inundação de lides individuais. Com essa providência, evita-se o surgimento de conclusões díspares sobre o mesmo plano fático, além de tutelar o aparente conflito de interesses inerentes à ordem econômica.
Noutro giro, é digno de nota a lamentável omissão da chamada Lei Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)(Lei Federal 14.010/20), que poderia muito bem disciplinar o relevante tema aqui abordado, com vistas a estabelecer regras equânimes para a devida implementação da segurança jurídica, almejada por todos.
Todavia, essa oportunidade legislativa não se concretizou e incumbe então ao Poder Judiciário a devida tutela não só dos direitos dos consumidores, mas também a devida salvaguarda da livre iniciativa, englobando assim a visão estrutural da ordem econômica.
Portanto, a solução mais ajustada para a composição dos interesses envolvidos foge da simples análise dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor e requer a devida cautela pelo operador do direito, que deverá conter o ímpeto da revisão desenfreada dos contratos de consumo através de uma interpretação constitucional sobre os contornos propostos.
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1 - (BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. 7ª ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. pgs.84/85)
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*Matheus Romero Martins é juiz de Direito do TJ/SP. Titular da 2ª Vara Cível da Comarca de Araras/SP e graduado pela Universidade FUMEC de Belo Horizonte.