Sobre morte e esquecimento
Palavras emanadas da primeira-boca, a essas não desejamos a morte; juntamente com o seu emissor, e invocando a mitologia clássica do esquecimento, que sejam banhadas no Rio Lete e banidas da humanidade.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
Atualizado às 08:45
Escrevemos ainda no calor dos fatos, e às vezes isso é bom, mas pode não ser. Helio Schvartsman lançou uma coluna justificando porque desejaria a morte de alguém. Em um texto que invoca o consequencialismo, ou utilitarismo, de Bentham, dentre outros, explica porque deseja o máximo de negação de um indivíduo em nossa sociedade: a sua morte. Chargistas também expressaram suas impressões sobre os tempos atuais com ilustrações que, sem precisar de explicações, apresentam um capitão-em-chefe associado ao que é de pior da humanidade.
O que têm esses exemplos de comum? Todos retratam uma forma de oposição ao negacionismo, ao ódio, à morte a que somos bombardeados nos últimos tempos. São argumentos fortes, mas são usados contra provocações fortes. A linguagem mais recente das redes sociais trabalha com a escandalização - quer de posições, quer de argumentos - para angariar audiência e, com isso, movimentar corações, mentes e dinheiro. E também poder.
O articulista e os chargistas usaram linguagem similar. E foram igualmente objeto de representação por infração à Lei de Segurança Nacional, porque em tese teria atentado contra a figura presidencial.
E aqui cabe uma indagação que se faz relevante, sobretudo em momento em que pretensos "blogueiros" e "ativistas" são detidos por ordem judicial, com fundamento parecido, por agressões endereçadas a integrantes do Supremo Tribunal Federal e a representantes do Congresso Nacional. Seriam as situações equiparáveis?
Uma conclusão apressada responderia afirmativamente, até porque o articulista e os chargistas foram objeto de representação criminal.
Mas temos que diferenciar as situações. As ofensas cometidas aos integrantes do Supremo Tribunal Federal, que culminaram com fogos direcionados à nossa Corte, não podem ser comparadas ao texto e às imagens em questão. Uma leitura, mesmo que superficial, do texto aponta para uma crítica a que qualquer autoridade pública se encontra submetida. Desejar a morte, na forma explicitada na coluna, não é senão a versão do "cancelamento" atual das redes sociais: a não-existência de alguém que evoque tanto sofrimento a um povo, como tem causado o atual mandatário.
Não há necessidade de elencar aqui as falas obtusas e absurdas emanadas da primeira-boca da nação, em desrespeito às dezenas de milhares de mortos e aos seus familiares. E também aos profissionais de saúde que arriscaram - e continuam arriscando - a vida própria em defesa da vida alheia. Essas falas já se encontram enfileiradas ao julgamento da história, se à história for permitido exercitar seu julgamento. Lutemos para que seja!
Tampouco escrevemos em defesa jurídica do articulista ou dos chargistas, certos que as representações não sobreviverão a um átimo longe das hostes do Poder Executivo.
Mas conclamamos a sociedade para que reflita sobre uma legislação que tem sido invocada para proteger situações tão diversas - a crítica à autoridade e à ameaça à autoridade - em um tempo de rupturas. Se a legitimação do Estado se encontra em xeque no nosso Brasil, também se encontra em xeque mundo afora. O establishment político encontra-se sob berlinda nas democracias ocidentais e a crítica aos seus fundamentos é bom que seja feita. Devemos fazer uma correta separação entre o que seja uma crítica a posturas políticas e ao que se reduza a ameaças e agressões. A Lei de Segurança Nacional não o faz. E por isso merece ser, ela mesma, cancelada. O termo aqui, apesar de não ser jurídico, adequa-se à linguagem das redes. Críticas são bem-vindas, agressões merecem reprimenda adequada.
E as palavras emanadas da primeira-boca, a essas não desejamos a morte; juntamente com o seu emissor, e invocando a mitologia clássica do esquecimento, que sejam banhadas no Rio Lete e banidas da humanidade.
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*Igor Sant'Anna Tamasauskas é advogado, mestre e doutorando em Direito do Estado. Sócio do escritório Bottini & Tamasauskas Advogados.