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Quais os limites da (im)prescritibilidade de ações de ressarcimento ao erário?

Livia Caldas Brito e Matheus de Souza Depieri

O cerne da questão reside nas diferentes interpretações a respeito da extensão do artigo 37, § 5º, da Constituição Federal. Ao consignar que "a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos [...] que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento", o dispositivo constitucional gera certa instabilidade jurídica.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Atualizado às 08:16

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Um assunto atual, sempre objeto de decisões judiciais, até por não ser um tema pacificado no âmbito das Cortes de Contas, diz respeito à aplicação de prazos prescricionais para ações de ressarcimento ao erário.

O cerne da questão reside nas diferentes interpretações a respeito da extensão do artigo 37, § 5º, da Constituição Federal. Ao consignar que "a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos [...] que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento", o dispositivo constitucional gera certa instabilidade jurídica. Nesse contexto, este artigo objetiva, especificamente com relação aos Tribunais de Contas, analisar o comando constitucional controvertido à luz da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF) e da doutrina especializada.

De início, é essencial destacar, como leciona Luís Roberto Barroso (2001), que "num Estado democrático de direito, a ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça". Entre os diversos mecanismos constitucionais que almejaram garantir tais princípios, a prescrição se destaca como uma figura fundamental para concretizar a segurança jurídica, uma vez que, ao estabilizar as situações jurídicas e as expectativas normativas da sociedade com o transcurso de tempo, evita que os jurisdicionados fiquem expostos a inseguranças ou incertezas perpétuas. Em outras palavras, a segurança jurídica visa a estabilizar as relações jurídicas no tempo.

Sendo a prescrição um elemento central do Direito brasileiro, a regra geral é a da prescritibilidade das pretensões. Em princípio, as únicas hipóteses de imprescritibilidade, como bem pontuou o ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do RE 669.069/MG, são "as exceções inequívocas, que estão na Constituição, que são: o crime de racismo e as ações de grupos armados contra o Estado democrático e contra a Constituição".

Em que pese tal concepção, o Tribunal de Contas da União, em muitas situações, tem adotado entendimento no sentido de declarar, genericamente, que são imprescritíveis as ações de ressarcimento por dano ao erário com base justamente na redação do artigo 37, § 5º, da Constituição Federal. Apenas a título exemplificativo, citam-se as seguintes decisões: acórdão 1.172/20, de relatoria do ministro Aroldo Cedraz, sessão de 13.05.20, do plenário; acórdão 5.466/20, de relatoria do ministro Vital do Rêgo, sessão de 12.5.20, da Primeira Câmara; acórdão 4.466/20, de relatoria do ministro Raimundo Carreiro, sessão de 30.04.20, da Segunda Câmara.

O acórdão TCU 2.709/08, de relatoria do ministro Benjamin Zymler, por exemplo, assentou que "o art. 37 da Constituição Federal conduz ao entendimento de que as ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis, ressalvando a possibilidade de dispensa de instauração de tomada de contas especial prevista no §4º do art. 5º da IN TCU nº 56/07". Esse posicionamento usualmente adotado pelo TCU chegou a ser confirmado no MS 26.210-9/DF, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, em 2008, e levou, posteriormente, à edição da súmula nº 282/TCU, que estabeleceu que "as ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis".

Apesar desses precedentes, e ao contrário do que fazem crer muitas decisões das Cortes de Contas, há de se reconhecer que a imprescritibilidade genérica de ações de ressarcimento ao erário não possui respaldo no ordenamento jurídico brasileiro nem na jurisprudência pátria.

A incompatibilidade de tal entendimento com a Constituição Federal pode ser evidenciada desde os debates constituintes sobre o art. 37, § 5º. Ao analisar as discussões havidas na Assembleia Nacional Constituinte, os professores Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza (2017) muito bem pontuaram que o objetivo do comando constitucional seria apenas "distinguir o prazo de prescrição da pretensão sancionatória (isto é, para aplicação de sanção ao responsável), de um lado, do prazo de prescrição da pretensão ressarcitória (isto é, para exigência de reparação dos danos decorrentes do ilícito), de outro", e não fixar uma regra geral da imprescritibilidade. Isso porque, apesar de ter sido proposta a imprescritibilidade literal de toda e qualquer ação de ressarcimento, tal disposição foi expressamente eliminada do texto final da Constituição.

A propósito, como muito bem analisado pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza (2017), tal disposição estaria prevista na "proposta de emenda 36 (deputado Paulo Macarini, 18.05.87), cuja redação era: 'são imprescritíveis os ilícitos praticados por qualquer agente, servidor público ou não, que causem prejuízo ao erário público'. A proposta de Emenda nº 231 (Deputado Sigmaringa Seixas, 9.6.1987) foi no mesmo sentido, com o acréscimo da parte final, relativamente à ação de ressarcimento: 'são imprescritíveis os ilícitos praticados por qualquer agente, servidor público ou não, que causem prejuízo ao erário público, bem como o direito de propor ação de ressarcimento respectiva'". Todos esses textos foram expressamente refutados.

Corroborando a interpretação histórica da norma constitucional, o STF vem construindo sua jurisprudência no sentido de definir a prescritibilidade como regra para as ações de ressarcimento ao erário.

De início, quando do julgamento do Tema 666, de relatoria do min. Teori Zavascki, em 2016, o STF definiu a tese de que "é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Em sede de embargos de declaração, opostos a fim de delimitar a amplitude da tese fixada, restou assentado que "não se consideram ilícitos civis, de um modo geral, os que decorrem de infrações ao direito público", de forma que, à época do julgamento, ainda não havia um posicionamento definido sobre a prescritibilidade de atos tipificados como ilícitos de improbidade administrativa, ou, especificamente, a respeito das pretensões de ressarcimento fundadas em decisões das Cortes de Contas.

Dando continuidade à sequência de temas da repercussão geral relacionados à extensão do disposto no art. 37, § 5º, chegou a vez de o STF, em 2019, analisar a problemática relacionada à improbidade administrativa, no julgamento do Tema 897 (RE 852.475/SP - leading case), sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. O STF entendeu por julgar "imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

A tese fixada pelo STF naquela ocasião consignou, de forma cristalina, que para configurar a hipótese excepcional da imprescritibilidade são necessárias (I) a prática de ato de improbidade administrativa (lei 8.429/92) e (II) a presença do elemento subjetivo do dolo. Não se mostra possível, portanto, a extensão da excepcionalidade da imprescritibilidade para outras hipóteses, eis que a própria linguagem adotada no acórdão foi significativamente restritiva quanto ao elemento subjetivo.

Por fim, e para consolidar o entendimento da prescritibilidade como regra nas ações de ressarcimento ao erário, o STF concluiu, em abril de 2020, o julgamento do Tema 899 da repercussão geral, acerca da prescritibilidade de ações de ressarcimento fundadas em decisões proferidas pelos Tribunais de Contas.

Após o julgamento do recurso (RE 636.886/AL - leading case), de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o STF houve por bem fixar a tese de que "é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas" destacando, no voto condutor da decisão, que "no processo de tomada de contas, o TCU não perquire nem culpa, nem dolo decorrentes de ato de improbidade administrativa, mas, simplesmente realiza o julgamento das contas a partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário".

Aspecto relevante a ser destacado, na linha do argumento desenvolvido no voto do ministro Alexandre de Moraes, é que como apenas seria imprescritível a pretensão de ressarcimento ao erário decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, apenas se poderia apurar a existência do elemento subjetivo em ação civil de improbidade devidamente ajuizada perante o Poder Judiciário, com a garantia da ampla defesa e do contraditório. Isso porque as Cortes de Contas não seriam o espaço apropriado para se definir a culpabilidade do agente, especialmente tendo-se em vista que as partes não exercem defesa específica em relação à imputação de suposto ato doloso de improbidade (VIANA et al, 2017). Além disso, por força de comando constitucional (art. 70, parágrafo único), o ônus da prova é do acusado, em comprovar a correta utilização dos recursos.

Percebe-se, portanto, que nada impede que, com base nas decisões das Cortes de Contas, seja ajuizada uma ação civil de improbidade administrativa para se verificar a presença de dolo na suposta conduta ímproba (hipótese na qual a pretensão de ressarcimento seria imprescritível). O que não pode acontecer, sob pena de inconstitucionalidade, é a definição de culpabilidade do agente pelos Tribunais de Contas e, por consequência, o reconhecimento de que incidiria a imprescritibilidade, pois estariam sendo vulnerados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Em outras palavras, não é possível ao Tribunal de Contas perquirir culpa ou dolo quando diante de um ilícito, não cabendo a esse órgão julgar a respeito da improbidade do ato.

O ministro Alexandre de Moraes (2014), antes de integrar a Suprema Corte, ao discorrer sobre a impossibilidade de se pleitear ressarcimento ao erário por improbidade em ação própria, muito bem explicitou que:

"apesar da obrigatória necessidade de reposição de eventual prejuízo ao erário em qualquer hipótese de dano ao patrimônio público, o ressarcimento integral do dano pela prática de ato de improbidade foi estabelecido constitucional e legalmente como sanção, podendo ser aplicada a partir de condenação e somente após o devido processo legal, iniciado com o ajuizamento de ação principal, pelo rito ordinário, proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada e garantidos os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório"

Assim, não sendo os Tribunais de Contas locus apropriado para se determinar o dolo dos agentes, não se pode concluir de outra forma que não pela prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário fundadas em decisões de Cortes de Contas, sob pena de violação aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito.

Apesar da fixação da tese em sede de repercussão geral ter acontecido recentemente, existem diversas decisões liminares proferidas no âmbito do STF em que já vinha se consolidando uma tendência do entendimento pela prescritibilidade, justamente em razão de se ter reconhecida a impossibilidade de se gerar tamanha insegurança jurídica ao administrado.

Leia-se, como exemplo, decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio no MS 35.971/DF, que consignou que não se pode admitir que o Poder Público, no âmbito de ações meramente patrimoniais, "cruze os braços, permanecendo com poder exercitável a qualquer momento". Isso porque, ainda nas palavras do ministro Marco Aurélio, "a evocação da segurança jurídica, como garantia da cidadania diante de guinadas estatais, confere relevância à passagem do tempo", já que não é razoável "assentar poder insuplantável do Estado, a obrigar o cidadão a guardar documentos indefinidamente para a própria defesa".

Com base nas decisões vinculantes do STF, portanto, resta claro que não se pode adotar uma interpretação extensiva do § 5º do art. 37 da Constituição, uma vez que a regra no ordenamento jurídico brasileiro continua a ser a da prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário. Se na seara judicial o tema está pacificado, com o julgamento dos temas de repercussão geral, cabe agora às Cortes de Contas adequar a sua jurisprudência, ainda controvertida, a fim de alinhar as suas decisões, em definitivo, com os princípios constitucionais vigentes no Estado Democrático de Direito e com a correta interpretação do disposto na Constituição.

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BARROSO, Luís Roberto. A prescrição administrativa no direito brasileiro antes e depois da lei nº 9.873/99. Salvador-BA: Revista Diálogo Jurídico. Ano I - vol. I - nº 4 - julho de 2001. Disponível Clique aqui. Acesso em 9 Maio 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Estraordinário nº 636.886. Recorrente: União. Recorrida: Vanda Maria Menezes Barbosa. relator: ministro Alexandre de Moraes. Acórdão publicado em 24.6.2020. Disponível Clique aqui

MORAES, Alexandre de. Ressarcimento ao erário por improbidade não pode ser pleiteada em ação autônoma. Conjur, 2014. Disponível https://www.conjur.com.br/2014-out-29/justica-comentada-ressarcimento-improbidade-nao-pleiteada-acao-autonoma. Acesso em: 10 de maio de 2020.

SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. A prescrição das ações de ressarcimento ao Estado e o art. 37, §5º, da Constituição. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 17, n. 68, p. 139-152, abr./jun. 2017. DOI: 10.21056/aec. v17i68.806.

VIANA, Rodolfo; SILVA, Fernando Matheus da; PECCININ, Luiz Eduardo. Tribunais de contas, improbidade e inelegibilidade: palestra proferida por Rodolfo Viana no V Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Revista Brasileira de Direito Eleitoral [Recurso Eletrônico]. Belo Horizonte, v.9, n.17, jul./dez. 2017. Disponível clicando aqui. Acesso em: 12 jun. 2020.

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t*Lívia Caldas Brito é colaboradora do escritório Pinheiro Neto Advogados.





t*Matheus de Souza Depieri é colaborador do escritório Pinheiro Neto Advogados.

 







*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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