A prestação do serviço de saúde pelo Estado
Os arts. 6º e 196 da CR/1988 prescrevem que o direito à saúde é direito de todos, de natureza fundamental, a ser provido pelo Estado em regime de solidariedade com a sociedade.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Atualizado às 08:04
1 - Introdução
1.1. A saúde no rol das atividades estatais.
Acertadamente afirma-se que a Constituição da República (CR/1988) é uma Carta de Competências. Isto porque ela repartiu entre as pessoas a prerrogativa do lícito desempenho de atividades jurídicas e materiais. Ora afiançou estas atividades (i) à exclusiva alçada do Estado (como o exercício da função jurisdicional, da defesa nacional, de certificação jurídica na constituição de sociedades empresariais, o que é levado a efeito pelas juntas comerciais, dentre outros); (ii) ao Estado e, se este assim desejar, igualmente aos particulares (hipóteses comumente conhecidas como concessão e permissão); (iii) ao Estado, cujo exercício, todavia, é afiançado exclusivamente aos particulares (caso dos juízes de paz, dentre outros); (iv) ao Estado e, mediante solicitação, aos particulares que competem em igualdade de condições para o seu desempenho (caso dos serviços de radiodifusão sonora ou de sons e imagens); e, por fim, (v) ao Estado e, cumulativamente, aos particulares (caso das atividades de educação, previdência, assistência social e saúde, esta última objeto de nossa investigação). É neste contexto que se pretende examinar o perfil constitucional das atividades de saúde, fixando-se o seu regime jurídico.
2 - Os serviços de saúde na Constituição e o seu regime jurídico
2.1. Saúde: um conceito constitucional
Os arts. 6º e 196 da CR/1988 prescrevem que o direito à saúde é direito de todos, de natureza fundamental, a ser provido pelo Estado em regime de solidariedade com a sociedade. A solidariedade no desempenho desta atividade emerge do fato de o art. 194 da Constituição prever que a seguridade social - conceito que acolhe em seu bojo a saúde - compreende um conjunto integrado de ações da iniciativa privada e do Poder Público, circunstância reveladora de vínculo solidário social na persecução deste objetivo fundamental da República (art. 3º, inciso I, da Carta Magna). Esta é a razão pelas quais estas atividades não são juridicamente qualificadas como serviços públicos ou, ainda, como atividades privadas: qualificam-se como atividades de "relevância pública". Sendo a saúde atividade de "relevância pública", o desempenho desta atividade por particulares não está integralmente disciplinado pelo Direito Privado; o regime de sua prestação sofre grande influxo de normas de Direito Público, que largamente derrogam as normas de Direito Privado.
Basta relembrar que os produtos medicamentosos podem ser comercializados no mercado consumidor, desde que o preço de venda seja igual ou inferior àquele unilateralmente fixado pelo Poder Público (medida impensável no campo da ordem econômica, no qual impera a livre-iniciativa). O caso não é de tabelamento de preços, mas de fixação de preços máximos para comercialização de cada um destes produtos ao Poder Público e aos particulares, nos termos do art. 200 da CR/1988. Neste contexto, incumbe ao Poder Público o dever-poder de atuar na área da saúde, garantindo-se a disponibilização e o seu concreto desfrute pela população (art. 197 da CR/1988). Os particulares podem igualmente desempenhar esta atividade de modo complementar àquele posto à disposição pelo Estado (art. 199, § 1º, da CR/1988) ou, ainda, de modo independente e autônomo (art. 199, caput, da CR/1988). A despeito de ser dever do Estado desempenhar estas atividades, elas podem ser integralmente terceirizadas à iniciativa privada? Em caso negativo, por qual razão? Em caso afirmativo, sob qual regime jurídico?
2.2. Atividades abrangidas pelo conceito constitucional de saúde
O art. 197 da CR/1988 segregou as competências públicas entre "ações" e "serviços de saúde". E por que a Constituição da República empregou esta dúplice significação nesta seara?
Porque as atividades de saúde estão, constitucionalmente, vinculadas aos campos da (i) regulamentação, (ii) fiscalização, (iii) controle e (iv) prestação de serviços volvidos a esse propósito. As três primeiras (regulamentação, fiscalização e controle) são atividades - ou, como quis a Constituição, "ações" - que balizam o oferecimento dos serviços de saúde à coletividade em geral. Já o "serviço de saúde" consiste no oferecimento desta comodidade ou utilidade material à coletividade.1 Nota-se, pois, que a Constituição da República confere ao Poder Público dúplice competência em relação à saúde: (i) uma em abstrato (para fixar disciplina normativa geral e abstrata disciplinadora da sua regulamentação, fiscalização e controle, ex vi do disposto no art. 24, inciso XII, da Carta Magna); e (ii) outra em concreto (que lhe impõe o concreto dever de prestação - como pedagogicamente prevê o art. 23, inciso II, da Constituição - além do seu efetivo controle e fiscalização).
2.3. Delegação da atividade saúde: delineamentos constitucionais
Vê, pois, que no plano abstrato, o Estado não pode subdelegar competência que lhe foi assinalada pelo povo, sob pena de vulneração do ideal da separação dos poderes. Já no plano concreto, a solução é parcialmente diversa: a fiscalização e o controle são atribuições indelegáveis pelo Estado, pois exigem que o ente fiscalizador e controlador esteja no exercício de função perseguidora de interesse alocado em plano hierárquico superior àquele perseguido pelo fiscalizado ou controlado. E, neste caso, não cabe qualquer espécie de delegação destas funções aos particulares, como é sabido e ressabido.
Deste modo, resta-nos a derradeira dúvida: há possibilidade de terceirização2 da prestação de serviço de saúde, assim entendido como "o trespasse do exercício - não da titularidade - de atividades jurídicas ou materiais, realizadas no exercício de função administrativa [...] a pessoas físicas ou jurídicas que, de algum modo, estejam habilitadas a desempenhá-las, em consonância com o disposto na Constituição da República".3
3 - Particulares em colaboração com o Estado na prestação do serviço de saúde
3.1. Prestação do serviço de saúde pelo Estado: alternativas constitucionais
Como anteriormente explicado, dentre as atividades necessárias à tutela jurídica e material da saúde, o inexcusável dever estatal concernente à sua prestação pode ser desenvolvido, isolada ou cumulativamente, com os particulares; as demais - afetas à regulação, fiscalização e controle - ficam sob a privativa alçada estatal.4 Apesar de a Constituição da República cominar ao Estado o dever de prestar diretamente o serviço de saúde, o art. 197 da CR/1988 assinala que o Estado pode executar essa atividade por meio da contratação de terceiros. Qual, pois, o alcance dessa cláusula permissiva? Diferentemente do que se processa em relação ao serviço público de educação - cuja prestação estatal se aperfeiçoa em estabelecimentos oficiais5 (art. 206, inciso IV, da CR/1988) e, excepcionalmente, não havendo vagas na rede pública, por meio de concessão de bolsa de estudos para que os alunos frequentem escolas privadas (art. 213, § 1º, da CR/1988) -, não existe obrigação constitucional prevendo que a prestação de serviço de saúde se dê na intimidade da estrutura orgânica do Estado. Nada de estranho nessa permissão constitucional, pois o art. 177 da CR/1988 prescreve ser monopólio da União (i) a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; (ii) a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; (iii) a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; (iv) o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem. Não obstante isto, o § 1º desse preceito admite a contratação de empresas estatais ou privadas para sua realização.
Previu-se com isto a possibilidade de o Estado contratar empresas privadas para, em seu nome - e por sua conta e risco - desempenhar um mister público. Daí por que, fundado no art. 197 da CR/1988, cada ente político pode, na sua esfera de liberdade, optar por desempenhar estas atividades na intimidade da sua estrutura orgânica ou, cumulativa ou alternativamente, contratar particulares para que, em seu nome, e por sua conta e risco, prestem o serviço público de saúde. E, no âmbito desta liberdade, insere-se a amplitude desta contratação; seja em relação à - equivocadamente denominada - atividade-fim ouatividade-meio (que é um critério casuístico e, portanto, desprovido de qualquer calço jurídico). Mas aqui não há falar em "terceirização", pois o Estado contratará uma pessoa para desempenhar em seu nome - e por sua conta e risco - esta atividade pública. Isto se deve ato fato de não haver o trespasse desse encargo estatal ao particular; ele permanece imantado na esfera de competência do Poder Público, que opta, no entanto, por contratar uma pessoa para desempenhar, em seu nome, esse mister. Nada aquém ou além disto. Justamente por estas razões que se rejeita a tese segundo a qual o Estado só poderia contratar terceiros para prestação de atividades-meio no campo da saúde, devendo desempenhar, por si, as atividades-fim. Deveras, é a Constituição que infirma esta proposta, como se procurou demonstrar.
3.2. Prestação do serviço de saúde pelo Estado: atividade particular complementar
A Constituição da República permite, por um lado, que o Estado preste diretamente o serviço de saúde ou, alternativamente, contrate particulares para prestar em seu nome. Alternativamente, contudo, o art. 199, § 1º, da CR/1988 prevê que "As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde [...] mediante contrato de direito público ou convênio". Dá-se, no caso, a possibilidade de as entidades privadas prestadoras de serviço de saúde - se assim desejassem - celebrarem contrato ou convênio com o Estado para, com isto, otimizar a concretização do preceito constitucional que assegura a todos a prestação universal e igualitária do serviço de saúde. A hipótese permissiva veiculada no art. 199, § 1º, da CR/1988 não se confunde com as hipóteses de fomento ou incentivo estatal ao desenvolvimento, pelos particulares, de atividades no campo da saúde, o que se dá por meio dos termos de parceria, contratos de gestão, termos de fomento, termos de colaboração e, por fim, acordos de cooperação de que tratam as leis Federais nos 9.637/1998, 9.790/1999 e 13.019/2014. Deveras, por meio do contrato de Direito Público e convênio constitucionalmente estabelecidos, um particular presta serviço público de saúde em nome do Estado (e não em nome próprio, como se dá nas hipóteses veiculadas pelas noticiadas leis). Nestes casos, portanto, o vínculo jurídico não se estabelece entre o usuário desses serviços e a pessoa contratada; diversamente, firma-se entre aquele usuário e o Estado. Isto porque o Poder Público continua no exercício da função administrativa prestacional, ainda que a sua concretização se dê por meio de terceiros.
4 - Conclusão
Em razão das considerações lançadas, conclui-se que o Poder Público não poderá "terceirizar" a prestação do serviço de saúde que lhe foi constitucionalmente confiado. Poderá, no entanto, contratar particulares para - total ou parcialmente - prestar essas atividades em seu nome, caso em que o vínculo prestacional permanecerá entre o Estado e o usuário desses serviços, estribado, sempre, pelo Direito Público.
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1 Sobre o sistema de saúde na CR/1988, confira-se: DALLARI, 2017.
2 Que nem ao menos é um conceito jurídico, como bem denunciou Carolina Zancaner Zockun (2017).
3 Op. cit.
4 Razão por que discordamos de Fernando Mânica, que circunscreve este pensamento às atividades complementares de saúde desempenhadas por particulares (MÂNICA, 2017).
5 Neste sentido: STF, Tribunal Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.864, rel. para acórdão min. Joaquim Barbosa, j. 8/8/2007, DJe de 2/5/2008.
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BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.864, rel. para acórdão min. Joaquim Barbosa, j. 8/8/2007, DJe de 2/5/2008.
DALLARI, Sueli Gandolfi. O Sistema Único de Saúde. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (Coord.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (Coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.
MÂNICA, Fernando Borges. Parcerias no setor da saúde. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (Coord.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (Coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: .
ZOCKUN, Carolina Zancaner. Terceirização na Administração Pública. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (Coord.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (Coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano 2020, nº 146, de abril de 2020.
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*Maurício Zockun é livre-docente e doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Professor na PUC-SP nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Administrativo. Presidente do IBDA - Instituto Brasileiro de Direito Administrativo. Advogado.
*Fernanda Ghiuro Valentini Fritoli é doutoranda em Direito Administrativo e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professora (em estágio docente) na PUC-SP, no curso de graduação em Direito Administrativo. Professora de cursos de especialização. Advogada no escritório Cammarosano Advogados Associados.