Impactos tributários sobre a incidência da multa pela demora na abertura de inventário decorrente do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado na covid-19
O Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação ("ITCMD") é um exemplo bastante evidente dessa interconexão entre os ramos do Direito Tributário e do Direito Privado.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
Atualizado às 13:47
A pandemia da covid-19 obrigou a sociedade a se adaptar a novas formas de relações sociais, econômicas e negociais, por seu turno, uma vez que o Direito consiste em um dado social, não pôde o legislador se furtar da necessidade de adaptá-lo também à nova realidade.
A lei 14.010/20, recém aprovada e publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de junho de 2020, insere-se nesse contexto: institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado ("RJET"), estabelecendo regras específicas para acomodar as relações jurídicas a esse período transitório regido por atrasos, pelo isolamento social e pela quarentena imposta tanto a agentes privados quanto públicos.
O Direito Tributário não ficou imune a impactos tangenciais decorrentes da aprovação dessa lei, afinal seus institutos têm sua definição, seu conteúdo e seu alcance delimitados pelos princípios gerais do direito privado, tal como enuncia o artigo 109 do Código Tributário Nacional.
O Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação ("ITCMD") é um exemplo bastante evidente dessa interconexão entre os ramos do Direito Tributário e do Direito Privado. Os aspectos centrais de seu fato gerador - sucessão legítima, testamentária ou provisória, e a doação - são todos conceitos extraídos deste último ramo e a ele submetidos. Isso significa dizer que, se alterados esses conceitos, há uma alteração colateral na incidência do ITCMD.
Posta esta breve digressão, verifica-se que o artigo 16 da lei 14.010/20 estabelece um diferimento em relação ao termo inicial do prazo para abertura de inventários, para o dia 30 de outubro de 2020.
Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
Esse prazo se encontra originalmente previsto no artigo 611 do Código de Processo Civil, da seguinte forma:
Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
Tratando-se de uma norma que afeta o termo inicial para abertura de sucessão, conceito essencial para o ITCMD, como exposto, é necessário identificar quais as repercussões dessa medida na legislação tributária.
A lei Estadual 10.705/00, instituidora do referido imposto no Estado de São Paulo, dispõe, em seu artigo 21, a respeito das multas em virtude de descumprimento de obrigações principal e acessórias. Dentre elas, consta no inciso I a imposição de multa em virtude do atraso na abertura do inventário.
Essa multa varia de 10% (dez por cento) do valor de imposto para atrasos entre 60 (sessenta) e 180 (cento e oitenta) dias, e 20% (vinte por cento) do valor para atrasos superiores aos 180 (cento e oitenta) dias. Montante este que estaria ainda sujeito a juros de mora e atualização monetária.
Com o diferimento do termo inicial do prazo de forma retroativa, isto é, considerando os inventários que tenham sido abertos a partir de fevereiro, parece-nos plausível sustentar que eventual atraso ocorrido ou que viesse a ocorrer nos próximos meses foi convalidado de forma superveniente pelo artigo 16 da lei 14.010/20. Tal fato permitiria àqueles que foram penalizados pleitear a restituição do valor da multa, ora que o fato gerador da multa não se concretizou.
Por fim, cumpre ressaltar que, mesmo se fosse impossível balizar a nossa posição na mera leitura da lei 14.010/2020, o fato é que a própria lei Estadual 10.705/00, em seu artigo 17, § 1º, prevê a possibilidade de ressalva para o prazo em questão decorrente de justo motivo declarado por autoridade judicial.
A despeito da dificuldade prática do reconhecimento do referido "justo motivo", conforme se verifica na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entendemos que, diante do contexto ora vivido, a questão seria mais pacífica e evidente do que nunca.
Assim, conquanto as Secretarias da Fazenda dos Estados ainda não terem adaptado seus sistemas para emissão de guias de recolhimento sem a incidência da multa, entendemos que pela possibilidade de se propor ações perante o Poder Judiciário, buscando o afastamento da cobrança indevida das penalidades decorrentes do atraso na abertura da sucessão.
No caso daqueles que já efetuaram o recolhimento com multa durante o período que vai de 1º de fevereiro de 2020 até o dia da promulgação da lei 14.010/2020, esse valor poderá ser objeto de pleito de restituição, devidamente atualizado, em grau de probabilidade razoável.
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*Ivan Borges Sales é mestrando em Direito Privado pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, sócio da Borges Sales & Alem Sociedade de Advogados, vice-presidente do Instituto de Direito Economia Criativa e Artes.
*Pedro Chambô é mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito Tributário pela FGVLAW, advogado na Moura Petrone Sociedade de Advogados.