Balbúrdia tributária
O atual quadro tributário é uma derrota: nada comunica, sobre o presente ou sobre o futuro.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Atualizado às 18:50
A substituição dessa balbúrdia tributária, sem coerência interna e sem adequação externa, entronizando um sistema simples e funcional, é quase uma terra prometida.
É consenso que um sistema tributário decorre da supremacia de um segmento social, e as concessões de praxe confirmam quem é quem.
A imagem que nos serve a uma visualização clara desse quadro é a da divisão em classes sociais. E cada classe social tem seu lugar de fala e sua escolha de futuro, prevalecendo, em nossa história, uma escolha de futuro estreita e excludente.
O atual sistema tributário - e firmemos um acordo de comunicação entre nós para continuarmos nomeando esse amontoado de leis que hoje temos de sistema - nada comunica em boa linguagem, é oneroso e inelutável em sua gestão, sisífica gestão.
Se o desafio primeiro da humanidade é a comunicação, o atual quadro tributário é uma derrota: nada comunica, sobre o presente ou sobre o futuro.
A Europa, em sua arte de convivência de Estados, deu forma para si a um denominador comum em seu cotidiano tributário. Nós outros, estamos a adiar: os dois partidos que dominaram a cena por décadas foram inaptos nesse plano de tantas consequências.
Esses países, à nossa frente, colocaram em vigência um novo modelo de sistema tributário, nos indicando qual o caminho a ser percorrido. Nada mais é novidade. Por todos os ângulos estudados, o assunto passou na prova da prática e seus resultados, para quem constatar queira, estão estampados.
E o conjunto das dificuldades que nos são inerentes foi por aqui especialmente estudado, debatido e colocado no papel: o "custo Brasil", a burocracia à sombra dessa legislação, exerce seu poder local lhe seguindo o perfil: caprichosa, contraproducente e interminável.
O capítulo, "guerra entre os estados-membros" em torno do ICMS (o derradeiro instrumento, ferrenhamente vigiado, depois de lhe tirarem os seus bancos) remete a uma atmosfera perdida no passado, quase de duelo, resistentes a qualquer mudança, e claramente outro deve ser o diálogo sobre o pacto federativo.
O ponto para definir, grosso modo, o sistema é a tônica no imposto sobre o consumo (chamado de sistema regressivo, concentrador) ou no imposto sobre o patrimônio.
O que hoje temos leva mais para quem muito tem: é um aparelho de concentração de renda. Impõe sua tônica no imposto sobre o consumo ("o trabalhador gasta tudo o que ganha", insistia Kalecki, o tão influente economista polonês, voz privilegiada na construção dessa nova economia, batizada de keynesianismo). Assim, o salário do trabalhador, obrigatoriamente destinado à sobrevivência, passa, todo ele, obrigatoriamente, por uma redução, ao pagar imposto sobre o consumo. Voltamos ao que foi dito no início: a primeira imagem é a da divisão em classe social.
E se a disposição ao imposto sobre o consumo assoma, ela apequena-se quando trata do imposto sobre o patrimônio (a comparação de alíquotas do imposto sobre o patrimônio no Brasil com os países europeus e com os EUA fala alto por si mesma, quase inacreditável).
Deixando de lado o nome do imposto, vamos a um simples exemplo de comparação de duas pessoas que receberam dinheiro (de duas diferentes origens) e quanto cada uma é obrigada a pagar de imposto: um servidor público que ao longo de sua vida receba em contraprestação a seu serviço o valor de 10 milhões de reais, vai pagar mais de 2 milhões, somente em imposto de renda, afora outros "impostos". Se esses mesmos 10 milhões forem transferidos, em um ato só, a um herdeiro, esse cidadão vai se livrar do imposto facilitadamente: em média, 400 mil reais (quatro por cento é a alíquota média, que vai ao limite máximo de oito por cento, fixado em resolução pelo Senado).
Das aulas de Direito Tributário, distantes, todos guardamos a conquista expressa na consagrada regra: "no tax without law" (nenhum imposto sem lei), um limite à ação do Rei, do Estado. A legalidade no direito tributário, irmã gêmea do habeas corpus, nascidos no mesmo dia. O mundo havia dado mais uma volta. Temos lei. E temos meios para influenciar o conteúdo da lei.
E guardei igualmente a história acontecida em Roma, quando um de seus imperadores ordenou a cobrança de tributo no uso dos banheiros da rua. Seu filho o questionou. Em resposta ao filho, ele leva uma moeda ao nariz e tripudia: "non olet" (não cheira). Não lhe importava as necessidades de seus súditos pagantes. (Esse caso romano era ensinado acriticamente, como algo natural ao direito tributário, como exemplo. Hoje serve de fundamento à cobrança de impostos em atividades ilegais, inusitada mudança de sentido. Mas continua a nutrir uma visão "neutra" da arrecadação).
É claro que a reforma não se exaure nesses dois pilares aqui lembrados, a racionalização da instrumentalidade ao lado de um melhor conteúdo de justiça na distribuição da carga tributária.
Outros aspectos necessariamente estarão presentes, e aqui destaco o entrosamento com o nosso projeto de desenvolvimento.
E a inafastável questão: buscar o missing link entre o sistema tributário e a ameaça da extinção da nossa espécie na Terra.
A ressalva: a perspectiva aqui apresentada é abstrata. Falta-lhe números, falta-lhe o concreto. Nesse sentido, é leiga. O quanto é possível caminhar a esse norte de uma melhor distribuição e de uma melhor eficiência na economia, realidades interdependentes, afigura um debate de números e, a posteriori, de interesses, ou seja, de estudos e correlação de forças.
Na passagem do universal abstrato ao individual concreto pulsa nossa vida e nossas lidas.
Mas nossa prática acadêmica e institucional naturalizou uma conduta, a saber, o nosso descuido ou desligamento dos dados. (Celso Furtado sempre reclamava disso, vide sua autobiografia). Nossa razão discursiva, essa Deusa iluminista, jaz sozinha em seu altar, à espera do concreto.
Buscando um contraponto, buscando objetividade nesses dias de distorção da perspectiva relativista, quando tudo se nivela, nos valemos hoje da destacada presença da decana FGV, da vitalidade do Insper e do novato Instituto Escolhas.
Nos prédios do serviço público não se encontra departamentos que apresentem estudos para o futuro ou análises concretas do resultado de específicas políticas públicas, à exceção do viés punitivista de órgãos de controle que elegeram para si a visão policial.
E dada a complexidade da economia, onde tudo se encontra diretamente relacionado em seus efeitos, a ética da responsabilidade desponta como referência. Em outras palavras: qual o provável resultado dessa ou daquela medida, considerando o todo estruturado?
E lembro aqui as lições de Hirschman em sua pequena-grande obra, "A retórica da intransigência", superando vigorosamente quem não quer mudança, sob o argumento de que os efeitos indiretos de uma reforma paralisam qualquer ganho total.
O sistema tributário conversa com as políticas públicas, as duas vertentes da justiça tributária.
E para falar das múltiplas políticas públicas aqui no Brasil, vamos escolher uma delas, a mais eficaz: o Bolsa Família, programa sem precedente e que marcou uma época. Não mais se discute o quanto foi bom esse programa, é consenso. O pouco transubstanciou-se em muito.
(Ao contrário do Fies, que não conseguiu equilibrar a equação, resultou em um programa com a marca do desperdício, deixando o gosto de um plausível futuro do pretérito: conseguiríamos resultado mais claro mobilizando menos recurso, pois, sem embargo dos resultados em termos absolutos, pagando-se pequena parte de uma dívida social, não é difícil perceber que, em certa medida, os meios contaminaram os fins).
E aqui é obrigatório o registro do inevitável próximo passo das políticas públicas: a renda universal mínima, superlativamente necessária, desde os começos, estendendo seu raio agora com o aparecimento no cenário da IA (Inteligência Artificial).
Garantindo-se a renda universal mínima e um sistema de saúde, nasce a cidadania.
Last but not the least: é possível o debate democrático de temas complexos? É possível discutirmos receitas e despesas? E aqui voltamos com a afirmação inicial: o desafio da comunicação humana.
Agora alvitra-se que a crise da pandemia, nos empurrando a uma extrema crise geral, nos eleve a um pacto que nos brinde com uma reforma. Temos tramitando a PEC 45/19. Parece-me que foi quase nada debatida na imprensa. Sei no entanto que seu texto foi escrito, em boa parte, pela mão de Bernard Appy, esse nosso Quixote, devotado há décadas a essa causa que, mesmo tão necessária, caiu no desânimo, passando a ser vista como uma causa complexa e perdida. Uma reforma que chegasse a essa nova forma seria uma vitória nossa, brasileira.
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*Augustino Chaves é juiz Federal do Ceará.