Insegurança jurídica e a nova Lei de Informática
Ilegalidade e insegurança jurídica na disciplina do novo benefício fiscal às empresas do setor de tecnologia da informação e comunicação (TIC).
terça-feira, 23 de junho de 2020
Atualizado às 09:19
A segurança jurídica é certamente um dos princípios mais caros ao direito e possui fundamental relevância em qualquer Estado que se queira próspero. A aplicação da lei, produzida de forma democrática e dentro da estrutura clássica de separação dos poderes deve ser o norte a ser incessantemente perseguido. Considerando o cenário atual de grave crise, no qual o Brasil precisará retomar o caminho do crescimento econômico o quanto antes, o princípio da segurança jurídica deveria ser buscado a todo o custo.
É bem verdade que ao se tratar do princípio da segurança jurídica haverá o necessário debate acerca de onde repousa ou onde é concretizado o citado princípio: Se na produção da legislação pelo Poder Legislativo ou se na aplicação da lei pelo Poder Judiciário. Para nós, o princípio da segurança jurídica deve ser primordialmente concretizado pelo Poder Judiciário. Órgão esse investido pela Constituição Federal do dever de dizer o significado das normas e de estabelecer a devida harmonia e coerência da legislação, com a mitigação ou eliminação das incertezas, antinomias, contradições e vícios do processo legislativo.
Não obstante a responsabilidade do Poder Judiciário pela concretização do princípio da segurança jurídica, um país que pretende ser reconhecido por um Estado Democrático de Direito, transparente, próspero, cumpridor das funções públicas com eficiência e moralidade, deve ter por objetivo maior a busca da segurança jurídica por todos os seus Poderes quer seja na produção de legislação, quer seja na sua aplicação.
No contexto brasileiro, pois, a simplificação da legislação tanto pelos números de leis quanto pela complexidade do conteúdo legislado nas mais diversas esferas e instâncias dos Poderes, indiscutivelmente, contribuirá em muito para a criação de um ambiente econômico de mais certeza, segurança e estabilidade e, quem sabe, de liberdade econômica, permitindo que o Brasil deixe a incômoda posição 124 do DOING BUSINESS (rankings).
Entretanto, ao contrário do quanto esperado e desejado, o Brasil é pródigo em justamente criar burocracias e estruturar legislações que estimulam o contencioso diante da falta de clareza, do excesso de complexidade, bem como em razão de ilegalidades ou inconstitucionalidades, tal como é o caso da nova Lei de Informática, lei 13.969/19, regulamentada pelo decreto 10.356/2020. No que diz respeito à referida lei, a qual visa adequar a legislação brasileira em razão de condenação na OMC, já tivemos a oportunidade de tecer alguns comentários1 sobre os motivos de sua publicação, sobre a mudança do benefício fiscal de redução do IPI e o aproveitamento de créditos financeiros, além da possibilidade de utilização do crédito financeiro em declarações de compensação e reflexos no art. 29, da lei 10.637/02, bem como no que se refere à suspensão do IPI na aquisição de insumos (MP, PI e ME).
Pois bem, acerca da complexidade da estrutura legal do novo benefício fiscal, é de se destacar alguns pontos que não foram disciplinados ou não foram tratados de forma detalhada e que não poderiam ter sido deixados para a regulamentação por decreto. Um dos pontos em questão é a disciplina do período de transição na mudança do regime de redução de IPI decorrente dos investimentos em P&D para a geração de créditos financeiros sobre os dispêndios em P&D. O segundo ponto é a definição sobre o conceito de faturamento bruto. O terceiro ponto é a existência de correlação direta ou distinção entre a base de cálculo do dispêndio em P&D e a base de cálculo do crédito financeiro.
Sobre a não definição de regras claras e balanceadas para a mudança da fruição de benefício fiscal de redução do IPI para geração de créditos financeiros passíveis de ressarcimento ou de compensação, notadamente no primeiro trimestre de 2020, a legislação permitiu, em tese, a adoção de uma das seguintes alternativas: (i) concentrar o investimento em P&D no primeiro trimestre de 2020, a fim de utilizar parte das despesas para justificar a redução do IPI e a parcela do crédito financeiro do segundo trimestre de 2020; (ii) não utilização da redução de IPI no primeiro trimestre e, por consequência, tomar integralmente as despesas de investimento em P&D como base de cálculo dos créditos financeiros a serem utilizados no segundo trimestre de 2020; ou (iii) considerar todas as despesas em pesquisa e desenvolvimento no primeiro trimestre para justificar a redução do IPI, o que levará à falta de crédito financeiro no segundo trimestre de 2020.
As três alternativas apresentam vantagens e desvantagens, mas em todas elas, ao se comparar o novo benefício com a estrutura legislativa revogada, o contribuinte estará em situação desvantajosa com maior custo tributário a ser verificado ou no primeiro trimestre ou no segundo trimestre de 2020. Em outras palavras, não foi estabelecida uma transição progressiva do antigo regime tributário para o atual.
Acerca do conceito de faturamento bruto, base para o cálculo do investimento em P&D, antes das alterações trazidas pela lei 13.969/19, o art. 11 da lei 8.248/91 e respectivo §17, delimitavam o conceito de faturamento bruto como sendo o valor correspondente à comercialização dos produtos incentivados no mercado interno, deduzidos dos tributos incidentes sobre a comercialização, inclusive o PIS e a COFINS (§17). Por outro lado, quando da alteração do art. 11 da lei 8.248/91, restou estabelecido que as pessoas jurídicas deveriam investir em P&D o equivalente a 5% do faturamento bruto no mercado interno sem menção a qualquer redução ou dedução a ser aplicada ao montante do valor de faturamento.
Porém, a despeito da inexistência de qualquer previsão de dedução do valor do faturamento, foi mantida a redação do §17, o qual determina que o PIS e a COFINS devem ser entendidos como tributos incidente sobre a venda e, portanto, na redação anterior, eram excluídos do valor do faturamento bruto. Assim, ao se alterar a redação do art. 11 da lei 8.248/91, suprimindo-se o comando de que o faturamento bruto deverá ser diminuído dos tributos incidentes sobre a venda para a definição da base de cálculo dos investimentos em P&D, o §17 perdeu completamente a razão de existir, passando a ser texto legal sem qualquer contexto e aplicação.
A conclusão possível, pois, é a de que ou houve erro pela não revogação do §17, ou, então, houve erro na redação do caput do art. 11 ao não prever que o faturamento bruto seria diminuído dos tributos incidentes na venda. As inconsistências aqui apontadas foram corrigidas pelo decreto 10.356/2020 ao estabelecer que "o faturamento bruto compreende, exclusivamente, o valor bruto da mercadoria declarado em documento fiscal, decorrente da comercialização dos bens de tecnologias da informação e comunicação habilitados à fruição dos incentivos" regulados no capítulo V do decreto e que tenha sido utilizado como base de cálculo para o dispêndio em P&D, excluindo-se: (i) os tributos não cumulativos cobrados, destacadamente, pelo vendedor dos bens na condição de mero depositário; (ii) os descontos incondicionais; (iii) as devoluções e as vendas canceladas; e (iv) os valores de frete e de seguro.
Ademais, ao contrário do quanto previsto no §17, do art. 11, da lei 8.248/91, o decreto 10.356/2020 determina a inclusão dos demais tributos incidentes sobre a venda - PIS e COFINS - no valor do faturamento bruto. Entretanto, embora o decreto 10.356/2020 tenha sanado as inconsistências trazidas pela lei 13.969/19, é de se questionar se o decreto regulamentador poderia ter avançado em regras não definidas ou não instituídas pela lei. Em outras palavras, o decreto poderia ter definido o que é faturamento bruto quando a lei não fez tal delimitação? Tal avanço pode vir a ser caracterizado como ilegalidade pela instituição de obrigação não prevista em lei.
Já no que diz respeito à correlação direta ou distinção entre as bases de cálculo do dispêndio em P&D e a do crédito financeiro, há uma incerteza na legislação no que diz respeito à exclusão da base de cálculo do investimento de P&D dos valores de venda com suspensão do IPI nos termos do caput do art. 29 da lei 10.637/02. Isto porque a lei 8.248/91 determina que para fazer jus ao benefício de geração de crédito financeiro, o contribuinte deverá realizar investimentos em P&D (art. 4º) equivalente a 5% do faturamento bruto (art. 11) dos produtos relacionados na mencionada legislação (art. 16-A).
Por sua vez, ao tratar do crédito financeiro, a lei 13.969/19 determina que esses serão apurados a partir do valor despendido em P&D no trimestre anterior, multiplicado por um determinado fator e limitado a determinado percentual da base de cálculo do P&D. Contudo, para fins de geração do crédito financeiro devem ser excluídos os valores de faturamento bruto decorrente da venda dos produtos relacionados no art. 16-A da lei 8.248/91 que tenham sido beneficiados pela suspensão do IPI (art. 29, lei 10.637/02).
Ao não serem tratados de forma integrada e sistemática - base de cálculo do investimento P&D e base de cálculo do crédito financeiro - restou incerto na legislação se os valores faturados com suspensão do IPI deverão ou não integrar a base de cálculo dos dispêndios em P&D ou se somente serão excluídos da base de P&D para fins de apuração do crédito financeiro. À primeira vista, se as vendas com suspensão do IPI não integrassem a base de cálculo do P&D (faturamento bruto), tal previsão estaria expressa no caput art. 11 da lei 8.248/91, local histórico da definição do termo faturamento bruto ou, ao menos, no art. 9º do decreto 10.356/2020, o qual trouxe, ainda que extrapolando sua competência, o conceito de faturamento bruto para os fins da Lei de Informática.
Passadas as complexidades da nova lei, trataremos da flagrante ilegalidade introduzida pelo decreto 10.356/2020. Nossa análise especificamente recairá sobre o art. 59 do referido decreto, o qual determina que o "disposto no caput e no inciso III do § 1º do art. 29 da lei 10.637, de 2002 [suspensão do IPI], aplica-se apenas à parcela da produção do estabelecimento cujos investimentos em PD&I sejam utilizados para geração de crédito financeiro, hipótese em que farão jus ao benefício previsto no art. 4º da lei 8.248, de 1991".
Segundo o art. 59 do decreto 10.356/2020, pois, a suspensão do IPI na aquisição interna de MP, PI e ME a serem utilizados na industrialização de produtos relacionados no art. 16-A, da lei 8.248/91, somente será aplicada em relação à parcela dos produtos que sejam aptos a gerarem o crédito financeiro em decorrência dos investimentos em P&D. Isto quer dizer que os insumos aplicados na industrialização dos produtos relacionados no art. 16-A, da lei 8.248/91, que sejam excluídos da base de cálculo do crédito financeiro em decorrência da venda com suspensão do IPI, não poderão ser adquiridos com suspensão do IPI, o que revela flagrante ilegalidade do decreto regulamentador.
A ilegalidade aqui afirmada decorre do fato de que a lei 13.969/19 não trouxe a restrição instituída pelo decreto. Não há dispositivo semelhante na lei. Ao se analisar a nova Lei de Informática, constata-se que o referido diploma legislativo promoveu tão somente mudanças no art. 29 da lei 10.637/02 para adequar a redação dos dispositivos relativos à suspensão do IPI que fazem jus os industrializadores dos produtos beneficiados pela Lei de Informática.
A lei 13.969/19 não trouxe nenhuma hipótese de restrição à aquisição de insumos com suspensão de IPI, sendo que a interpretação sistemática do art. 29 da lei 10.637/02 permite concluir que o direito à suspensão do IPI se dá em razão da pessoa jurídica fazer jus ao benefício do crédito financeiro como um todo e não pela aplicação da suspensão do IPI apenas em relação aos produtos cujo faturamento seja incluído na base de cálculo do P&D. Corroborando tal interpretação, tem-se que a regra geral da suspensão do IPI do citado art. 29 é direcionada aos estabelecimentos industriais preponderantemente fabricantes de determinado produto, o que concede o direito à aquisição de todos os insumos com suspensão do IPI e não somente daqueles que serão aplicados nos produtos que qualificam o contribuinte ao benefício do IPI.
O citado decreto também viola o princípio da isonomia ao limitar a aquisição de insumos com suspensão do IPI apenas às aquisições internas, o que, por óbvio, cria distinção inconstitucional entre empresas do mesmo setor, mas que possuam operações que se distingam apenas pela origem dos insumos, se nacionais ou importados. Nesse caso, outro desdobramento foi a instituição de discriminação entre o insumo nacional e o insumo importado em detrimento do nacional, o que também não é admitido pela Constituição Federal.
Ao nosso ver, pois, embora mantida a competitividade da indústria nacional de TIC pela nova legislação, é necessário apontar que a sistemática introduzida pela nova Lei de Informática padece dos vícios da insegurança jurídica em razão de redação pouco precisa e de ilegalidade e de inconstitucionalidade por excessos do Poder Executivo na regulamentação da lei visando a redução dos benefícios concedidos pelo legislador ordinário.
1 As regras de compensação introduzidas pela lei 13.969/19; e Nova lei da informática e a suspensão do IPI na aquisição de MP, PI e ME.
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*Luciano Burti Maldonado é sócio da Ferreira Pires Advogados, mestre em direito tributário pela FGV-SP.