1937 de novo?
O Governo Militar foi marcado pela interminável edição de atos institucionais, como se isso legitimasse sua atuação.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
Atualizado às 11:48
A tática de praticar ilegalidades dando aparência de legalidade é algo comum durante a história. Foi assim no golpe de 1964 no Brasil, no nazismo na Alemanha, no fascismo na Itália e em diversos outros momentos e períodos da história mundial. Por isso temos que ter cuidado com pessoas e veículos de comunicação que distorcem os fatos, para ambos os lados ideológicos. Posição sobre um tema é legítimo, distorção da realidade, não! Por exemplo, já assisti algumas pessoas afirmarem que não houve ditadura no Brasil e que o marechal Castelo Branco teria sido eleito pelo Congresso, com votos de Ulisses Guimarães e de Juscelino Kubitschek. Isso é uma meia verdade. Depois que houve o golpe militar em 31 de março de 1964, no dia 15 de abril Castelo Branco fez um célebre discurso, onde fala a palavra democracia cinco vezes e garante que cumprirá a Constituição e apenas terminará aquele mandato já iniciado, prometendo fazer eleições diretas em outubro de 1965. Como não havia outra saída, pessoas como Ulisses e Juscelino acreditaram na promessa e votaram no Marechal. Só que a promessa nunca foi cumprida e o regime militar durou 20 anos, até 1985!
Para justificar o golpe, os militares criaram factoides e incutiram nas cabeças desavisadas que João Goulart seria um "comunista", que tinha viajado à China por essa razão e que iria destruir o país. Notem o absurdo, Jango era um grande proprietário de terras no Rio Grande do Sul, político declaradamente "de direita", por sua história e por sua vida pessoal, mas começaram a soltar fake news contra ele nesse sentido. Por isso que hoje quem não concorda com determinado governo vira "comunista" da noite para o dia. Por outro lado, é verdade que João Goulart tentou implementar, via decreto, as chamadas reformas de base, que teriam sido o estopim para a concretização do golpe. Mas a incoerência é tão grande, que naquele mesmo discurso do dia 15 de abril de 1964, Castelo Branco também anunciou exatamente as mesmas reformas, só não as chamou "de base".
O Governo Militar foi marcado pela interminável edição de atos institucionais, como se isso legitimasse sua atuação. Essa era a real intenção, isto é, "dar ares de legalidade" a medidas totalmente arbitrárias, bastando lembrar o famoso AI-5, editado em 1968 por Costa e Silva, que fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos e também direitos políticos de cidadãos, proibiu a concessão de "habeas corpus", dentre outras teratologias, perdurando até 1978!
Em 1933, na Alemanha, Hitler baixou o Ato de Habilitação e o processo de Gleichschaltung, "legitimando" o Partido Nazista (NSDAP) no Poder.
Nenhuma democracia do mundo convive com um poder moderador, muito menos de natureza militar. No Brasil pré-republicano, especificamente na Constituição Imperial de 1824, na época do chamado "parlamentarismo às avessas" (1847), apesar da existência do primeiro ministro, D. Pedro II era chefe de Estado e chefe de Governo. Já na primeira Constituição Republicana, em 1891, essa figura arcaica foi excluída do texto constitucional.
O hoje tão debatido artigo 142 da CF/88 NÃO permite que as Forças Armadas atuem para mediar eventual desarmonia entre os Poderes da República (funções executiva, legislativa e judiciária). As únicas formas de resolver divergências são pelo diálogo e pela própria Constituição Federal. E o que ela diz? Diz, claramente, que a última palavra é SEMPRE do Judiciário, resguardadas as regras do sistema de freios e contrapesos. Qualquer coisa diferente disso não é democracia! O artigo 142 da CF/88 simplesmente permite que as Forças Armadas sejam usadas como polícia ostensiva/repressiva em momentos como desordem e/ou rebeliões, saques, guerras entre milícias, facções etc. É só isso! Mesmo que se forçasse uma leitura ultra literal, gramatical dessa norma, fato é que uníssono o entendimento segundo o qual o método hermenêutico correto para a análise do texto constitucional é aquele que privilegia uma teleologia sistêmica e não isolada. Permitir interpretação diversa ao artigo 142 da CF/88 é negar o próprio Estado Democrático de Direito.
Alerte-se, ainda, que após a CF/88 TODOS os Governos tiveram seus atos controlados constitucionalmente pelo Judiciário, ora corretamente, outrora com ativismo impróprio (planos econômicos de Collor, privatizações de FHC, mensalão, impeachment de Dilma, proibição de nomeação de Lula como ministro, proibição de Cristiane Brasil como ministra de Temer, limitação de indulto de Natal de Temer, proibição de nomeação de ramagem etc). Veja-se que não é verdade que o STF esteja agindo diferente com o atual governo.
Lembrem-se sempre de 1937, quando Getúlio Vargas aplicou um "auto golpe", dentre outras coisas porque não gostava de ser questionado. Eram esperadas eleições para setembro de 1938, que seriam disputadas por Armando de Sales Oliveira, José Américo de Almeida e, de outro lado, por Plínio Salgado, quando Getúlio anunciou que haveria em curso um "plano comunista" (sempre a mesma história) para a tomada do Poder (plano Cohen).
Por fim, um alerta, se me permitem: cuidado com juristas que atribuem interpretação sabidamente errada ao texto constitucional. Pode ser que existam interesses não republicanos por trás dessas lamentáveis atitudes. Triste, para não dizer deprimente!
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*Zaiden Geraige Neto é doutor, mestre e graduado em Direito pela PUC/SP, professor de mestrado e doutorado da Universidade de Ribeirão Preto, MBA pela FGV.