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O rateio de despesas no shopping e seus limites

Cássio Roberto dos Santos Andrade e Daniel Santos Prado

Afinal, sem responsabilização dos proprietários e gestores dos shoppings, suas decisões unilaterais e desproporcionais apenas prolongarão prejuízos, abusos, injustiças.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Atualizado às 10:11

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Ao visitar um shopping center, nota-se que sua estrutura é dividida em área comum, de circulação de pessoas, e áreas exclusivas, onde estão localizadas as lojas. Por isso, juridicamente, a figura do shopping se aproxima de um condomínio edilício (art. 1.331 do Código Civil). Isso implicará, certamente, na relação entre empreendedor e lojista.

A concepção de um shopping é idêntica à de um edifício comum. Inicialmente, reúnem-se um número determinado de investidores e empreendedores que, a partir de estudos e investimentos, elaborarão um projeto que reunirá lojistas de variados segmentos em uma única construção. Concluída a fase de estudos e projetos, a construção ocorrerá por meio de incorporação, nos moldes da lei 4.591/64, que exigirá, entre outros, a elaboração de convenção de condomínio e regimento interno.

Registrada a convenção de condomínio no competente Cartório de Registro de Imóveis, ficam delimitadas as áreas comuns e as de uso exclusivo, momento em que o empreendedor poderá comercializar as unidades destinadas aos lojistas. E é na forma de comercialização que se inicia a discussão, já que, em regra, ela não ocorre por meio de venda, mas pela locação dos espaços onde se instalarão as lojas.

Pelo fato de as áreas exclusivas serem locadas aos lojistas e não vendidas, os empreendedores continuam sendo proprietários, e, por lei, os únicos condôminos, sendo os únicos com direito de voto. Ou seja, formalmente os empreendedores são os únicos condôminos, e podem decidir sobre a organização do condomínio e a divisão das despesas.

Contudo, a relação entre empreendedor/locador e lojista/locatário possui contornos singulares em se tratando de shopping center. Em regra, o condomínio não possui finalidade lucrativa, já que seu intuito é o de organizar as áreas comuns. Inclusive, o condomínio é ente despersonalizado que está desobrigado de recolher Imposto de Renda e declarar seus rendimentos, conforme o parecer normativo CST 76/1971, mesmo que possua inscrição no CNPJ.

Diferentemente dos condomínios convencionais, o shopping center é uma estrutura que visa lucro, não apenas para o lojista, mas para o empreendedor. Basta lembrar das campanhas de Natal. Nessa época (que atualmente antecedem em mais de um mês a festividade), as áreas comuns do shopping estão adornadas com trenós, renas e pinheiros com os mais variados e coloridos enfeites. Há também sorteios de prêmios diversos e brindes para aqueles que consumirem um valor mínimo. No mesmo período, também há previsão contratual de que o lojista pague aluguel extra.

O shopping é, então, um empreendimento que definitivamente possibilita não apenas os lojistas lucrarem, mas o próprio empreendedor, que não é mero administrador da área comum. Por visarem lucro, esses empreendimentos, não raro, têm dificuldade de obter CNPJ como condomínios, e se cadastram como consórcio de empresas.

Registrados como consórcio de empresas, o documento basilar da relação entre os empreendedores deixa de ser a convenção de condomínio e passa a ser um contrato particular. Nele, tratam da forma que exercerão seu direito de propriedade, locando suas lojas, e também como será explorado comercialmente o espaço. Nessa condição, as regras impostas pelo consórcio estariam sujeitas à adesão ou não, pelo lojista, ao negócio proposto.

Com poder e liberdade de organização, os empreendedores de shopping estabelecem regras nos contratos de locação e também em documentos usualmente intitulados Escritura Declaratória de Normas Gerais de Locação. Fixam, além disso, o Coeficiente de Rateio de Despesas (CRD), onde estabelecem os parâmetros para cálculo da despesa a ser assumida por cada loja, sendo comum que as lojas âncora, em razão de seu renome e projeção no mercado, tenham tratamento especial no rateio, em prejuízo aos demais lojistas.

Nesse modelo, o que fica claro é que o inquilino/lojista assume as despesas e o empreendedor se responsabiliza pela tomada de decisões. O lojista, então, é tratado, comumente, como mero contribuinte. Assim, cabe questionar: (i) o empreendedor pode estabelecer quaisquer critérios na fixação das taxas a serem pagas pelos lojistas para manutenção da área comum?; (ii) é justo que o lojista não possua poder decisório, mesmo tendo papel fundamental no sucesso do empreendimento como um todo?

Não é porque está presente a finalidade lucrativa que se pode ignorar na análise dessas questões o aspecto condominial da relação, sob pena de tornar desigual a relação entre empreendedor e lojista. Ora, na rotina de um shopping as despesas ordinárias são geradas pelos próprios lojistas e pelos consumidores que ali circulam. Na condição de locatários, são eles que devem honrar as despesas ordinárias do condomínio (art. 23, inciso XII da lei 8.245/91).

Ainda sobre as despesas condominiais, o Código Civil é claro ao determinar que elas serão rateadas na proporção das frações ideais (art. 1.336, inciso I). Ou seja, as unidades com frações maiores devem arcar com uma quota maior de despesa em comparação às menores.

Como se nota, por mais que a constituição do empreendimento possa ocorrer de forma privada e particular entre os empreendedores coproprietários, a legislação civil - Código Civil, Lei de Inquilinato e Lei de Condomínio - não pode ser olvidada em prejuízo dos lojistas locatários. Do contrário, o que pode ocorrer é uma relação em que os únicos favorecidos são os empreendedores e as lojas âncora, expondo o lojista comum a ônus desproporcional.

Não é incomum, por exemplo, que o CRD estabeleça fórmula que seja inversamente proporcional à fração ideal das lojas, implicando em uma despesa maior aos pequenos espaços e menor às maiores lojas. Isso tudo sem mencionar as condições especiais concedidas às lojas âncora.

Não parece razoável, por isso, que a atipicidade do empreendimento concebido como shopping center produza desequilíbrio de forma que favoreça somente o empreendedor e aqueles que indicar, em detrimento dos demais lojistas, que também possuem interesse lucrativo e produzem resultado para o empreendedor.

Em suma, o empreendedor não deve sobrecarregar o lojista de despesas, mas deve se organizar para garantir igualdade e equilíbrio em seu rateio. É nesse sentido, inclusive, a jurisprudência do TJ/MG (como na decisão da apelação cível 1.0024.11.293601-8/002, publicada em 28/11/2014). Além disso, já foi decidido pelo STJ que os empreendedores, por serem também condôminos, devem igualmente se sujeitar ao rateio de despesas (REsp 493.723/DF).

Se tanto locador quanto locatário devem ratear entre si as despesas, a tomada de decisões também deve passar pelo crivo de ambos. Isso porque, ignorar a situação dos lojistas pode representar o fracasso absoluto da proposta do shopping center.

Um exemplo se dá com os Fundos de Promoção e Propaganda (FPP). Esses fundos são, via de regra, uma associação sem fins econômicos instituída pelos próprios associados fundadores (empreendedores), que é custeada pelos lojistas. Sua finalidade é planejar e executar promoção e publicidade, as promoções internas e também as institucionais do shopping.

Mais uma vez, o benefício é mútuo: se o FPP gera ganhos para o lojista, os empreendedores também obterão vantagem. Contudo, o risco fica todo com o lojista: se as campanhas custeadas pelo fundo não reverterem em receita para as lojas individualmente, o empreendedor, no máximo, deixará de auferir receita, mas continuará desconhecendo o dissabor do prejuízo.

Como se nota, o lojista também deve ter garantido seu direito de decidir, mormente quando o empreendedor é o administrador de seus interesses, e, muitas vezes, aquele que se diz capaz de projetar seus negócios por meio do shopping. Afinal, suas ações e os respectivos resultados estão interligados.

Por isso, o lojista deve conhecer os direitos e obrigações que regem sua relação com o shopping, mantendo-se atento e crítico com relação aos valores rateados pela administração do empreendimento. Se faltar transparência, é preciso exigir esclarecimentos, valendo-se dos instrumentos jurídicos apropriados para obter a regularização da prestação de contas, o que é garantido pelo art. 54 da Lei do Inquilinato, com possibilidade de reembolso em caso de excessos.

Afinal, sem responsabilização dos proprietários e gestores dos shoppings, suas decisões unilaterais e desproporcionais apenas prolongarão prejuízos, abusos, injustiças. E pior: ao retirar recursos do lojista sem respaldo jurídico, eventual enriquecimento ilícito dos shoppings pode inviabilizar o próprio negócio, não raras vezes construído com muito sacrifício.

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*Cássio Roberto dos Santos Andrade é sócio do escritório Cássio Andrade Advogados Associados.

*Daniel Santos Prado é sócio do escritório Cássio Andrade Advogados Associados.

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