A função social da propriedade em tempos de pandemia
As reintegrações de posse sem observância das previsões constitucionais, em especial, sem considerar a função social da propriedade, além de ilegal é ato que viola frontalmente o direito principal da dignidade da pessoa humana, para privilegiar interesses nada republicanos.
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Atualizado às 07:59
A Constituição Federal previu em seu inciso XXIII, do art. 5º, que: "a propriedade atenderá a sua função social"
No próprio "caput", do referido artigo 5º, da CF/88, o legislador constituinte quis mostrar a importância do direito de propriedade ao garantir a inviolabilidade ao direito de propriedade: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". O mesmo direito que se repete no inciso XXII, do art. 5, CF/88.
A nossa Constituição Federal, no seu art. 170, em título específico da ordem econômica e financeira tratou ainda de disciplinar, como princípio geral da atividade econômica, a função social da propriedade, prevendo que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, teria por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Seguindo o raciocínio da importância constitucional do direito à propriedade, o art. 182, CF/88, previu que existiria uma política de desenvolvimento urbano, que seria executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais que seriam fixadas em lei, e que tal política teria por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem - estar de seus habitantes.
Restou garantido ainda, que os municípios com mais de vinte mil habitantes teriam aprovado plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, sendo observado que a mesma Constituição Federal definiu com clareza, que a propriedade urbana cumpriria sua função social quando atendesse às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no respectivo plano diretor.
Nesse sentido, disciplinou a CF/88, acerca das desapropriações de imóveis urbanos, que as mesmas seriam feitas com prévia e justa indenização em dinheiro, facultando ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promovesse seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Tratou de prever ainda o texto constitucional que aquele que possuísse como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, iria adquirir o domínio da respectiva área, desde que não fosse proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Na mesma linha de pensamento restou garantido que aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possuísse como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-se produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, iria adquirir a mesma como sua propriedade.
Não obstante as previsões constitucionais supracitadas, não têm sido incomuns os casos de reintegração de posse, por ato administrativo de prefeitos, com uso de força da Guarda Civil Municipal.
Os referidos atos nascem eivados de ilegalidade pelos diversos prismas. Não verificado o esbulho possessório, por registro de ocorrência no ato da eventual turbação da posse, e posteriormente de forma imediata reclamado o direito junto ao poder judiciário fazendo prova inequívoca de ser legítimo proprietário (matrícula e escritura do imóvel), o poder público não deve fazer a reintegração de posse valendo-se de força policial local da GCM.
Ademais, têm sido comuns ações de reintegração de posse intentadas por procuradorias em diversos municípios, sem sequer qualificar os ocupantes dos imóveis objetos das ações.
Tal fato demonstra inicialmente dois pontos:
1. Ausência de qualquer intenção de levantar as condições socioeconômicas dessas famílias, simplesmente remetendo as mesmas às ruas em condições adversas para a miserabilidade extrema; e
2. A inobservância da função social constitucional da propriedade.
Ambas, ferem de morte os direitos e princípios constitucionais diversos, alguns aqui elencados e jogam em vala rasa as previsões insertas na Constituição Federal.
Por outra via, a Guarda Municipal fazer reintegração de posse como função típica, à revelia do disposto no §8º, art. 144 da CF e fora das previsões constantes da lei federal 13.022/14, ignorando, portanto, a sua origem patrimonial é medida desprovida de qualquer legalidade, impondo aos agentes e a quem determina, responsabilidade que deve ser apurada sempre que ocorre tal situação.
Assim, o que se observa é que as reintegrações de posse sem observância das previsões constitucionais, em especial, sem considerar a função social da propriedade, além de ilegal é ato que viola frontalmente o direito principal da dignidade da pessoa humana, para privilegiar interesses nada republicanos.
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*Cleiton Leite Coutinho é advogado, ex-corregedor e Ouvidor Geral da Secretaria de Segurança Urbana de São Bernardo do Campo, Dirigente do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP), membro da ABJD e Sócio do Escritório de Advocacia Ferrazoni e Coutinho Sociedade de Advogados.