Liberdade religiosa sob ameaça: Hoje eles, amanhã eu?
Por mais evidente que seja, o óbvio precisa ser dito: o exemplo da Rússia e dos Estados Unidos mostram que ter um arcabouço normativo protetor da liberdade religiosa, ter como líder de uma nação um adepto ou simpático por alguma religião nunca será sinônimo de imunidade contra violações.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
Atualizado às 08:13
No dia 09 de junho de 2020 o Juiz Criminal da vara da cidade russa de Pskov1 condenou mais um membro da religião Testemunhas de Jeová à prisão. Dessa vez foi o sr. Gennady Shpakovskiy, 61 anos, que antes da condenação teve seu apartamento "grampeado" e depois invadido em 2018 pelo serviço secreto russo, quando então foram coletadas as provas "do crime".
A dura sentença, a mais longa já registrada para este "crime", aplicou ao sr. Shpakovskiy a pena de prisão por 6,5 anos. O crime? Ser membro da religião Testemunha de Jeová, a qual foi banida em 2017 por decisão da Suprema Corte da Rússia, que decidiu tratar-se de "grupo extremista" equiparável à organização criminosa (vide informe MIGALHAS nº 4.5422). Pela decisão da Suprema Corte, pertencer, apoiar, integrar, aderir, realizar culto individual ou coletivo da religião Testemunhas de Jeová constitui ato criminoso.
Desde então a "FBS" (Serviço Secreto Russo) tem realizado uma caçada implacável aos Testemunhas de Jeová.
Exemplo disso é que em 06 de junho de 2020, condenação semelhante foi proferida, desta vez pela Vara Criminal de uma região da anexada Criméia. Artyom Gerasimov, 31 anos, foi condenado à pena de 6 anos de prisão pelo mesmo fato: ser membro da religião Testemunha de Jeová.
Atualmente são 31 membros da religião Testemunhas de Jeová que estão encarcerados e já condenados na Rússia, única e exclusivamente por professarem sua fé. Um total de 170 membros da religião Testemunhas de Jeová já foram presos "preventivamente"; 23 estão em prisão domiciliar; 145 casas foram ilegalmente invadidas pela polícia russa só em 2020, inclusive durante a pandemia3.
Curiosamente, em 12 de dezembro de 1993, a Rússia aprovou sua Constituição Federal4, em cujo art. 19.2 está dito que "o Estado assegurará equidade de direitos entre todos, independentemente de...religião" e que todas as "formas de limitação aos direitos humanos, dentre os quais possíveis limitações à liberdade religiosa, serão banidas". E mais, no art. 28 está assegurada à liberdade religiosa, de culto e de consciência e de proselitismo religioso. Mesmo no caso das Testemunhas de Jeová, em que há a escusa de consciência quanto ao serviço militar, o art. 59.3 da Constituição russa prevê serviço alternativo.
Com um arcabouço normativo constitucional dessa envergadura, pergunta-se: como uma atrocidade interpretativa pode levar à criminalização do pertencimento e prática das liturgias pacíficas de uma religião?
Em 2018, perguntado sobre a decisão da Suprema Corte russa de criminalizar a religião Testemunhas de Jeová, Vladimir Putin declarou: "Testemunhas de Jeová são cristãos. Eu não entendo a razão de serem perseguidos. Isto deve ser verificado, precisa ser feito". Desde então impera o silêncio e nada foi feito pelo Kremlin.
Em 02 de junho de 2020 o presidente dos Estados Unidos assinou um audacioso decreto executivo estabelecendo que a "preservação da Liberdade Religiosa em todo o mundo é uma política prioritária dos Estados Unidos" e prometeu investir 50 milhões de dólares em programas que "antecipam, previnem e combatem ataques contra à liberdade religiosa individual ou de grupos".
Mas em 10 de junho, na tradicional solenidade anual de divulgação do "Relatório Anual dos Estados Unidos Sobre a Liberdade Religiosa no Mundo"5, nem uma linha foi citada quanto as condenações proferidas na Rússia. Há uma vaga referência a abusos cometidos pelas autoridades contra os Testemunhas de Jeová e em relação ao grupo islâmico Hizb ut-Tahrir. Mas sobre as sentenças condenatórias, um silêncio quiçá estratégico e talvez justificado por razões de conveniência política, como o "Russiagate", que teve por objeto a investigação de possível interferência russa nas eleições de 2016 nos Estados Unidos e supostos vínculos entre associados de Trump e autoridades russas.
Afinal, fazer valer o programa de "preservação da Liberdade Religiosa em todo o mundo" anunciado pelo secretário de Estado Mike Pompeo, que ainda frisou em 02.06.20 que "não há nenhuma outra nação no mundo que se importe tão profundamente com a liberdade religiosa do que nós", deveria ensejar ao menos uma interpelação diplomática para verificação concreta e efetiva da situação da Rússia, seguida de denúncia perante o Alto Comissionado das Nações Unidas Para Direitos Humanos, pacto a que a Rússia aderiu em 1993. Mas o risco de ressuscitar o desgastante "Russiagate" e causar perda de capital político parece ter gritado mais alto do que as vozes dos cristãos presos ilegalmente na Rússia.
Não há dúvida sobre a "liability" da Rússia perante a ONU. O que falta é o discurso estadunidense ser tornado realidade. Afinal, a "palavra convence, mas o exemplo arrasta"6.
Mas quando o tema em pauta foi afugentar protestantes que estavam na Praça Lafayette (tradicionalmente usada para protestos históricos nos EUA) para o Presidente poder caminhar até uma capela em "Wasghinton DC" e então segurar uma Bíblia e posar para fotos, Trump foi implacável e não hesitou em autorizar o uso de "munição viva" e forte repressão contra os manifestantes. Em tal evento ficou evidenciado que a "liberdade religiosa", se equivocadamente entendida, se torna um "vagão de trem vazio" em que se pode inserir o que quiser e mover para qualquer lado. Trump quis sinalizar que respeita e conhece a Bíblia. Mas será que conhece o personagem central dela e seu discurso? Ou foi apenas um ato demagogo para angariar credibilidade perante os conservadores que lhe apoiam?
Por mais evidente que seja, o óbvio precisa ser dito: o exemplo da Rússia e dos Estados Unidos mostram que ter um arcabouço normativo protetor da liberdade religiosa, ter como líder de uma nação um adepto ou simpático por alguma religião nunca será sinônimo de imunidade contra violações. Nos exemplos dados, estão em curso violações reais e omissões mais reais ainda.
O Relatório Anual dos Estados Unidos Sobre a Liberdade Religiosa do mundo faz bem em listar e prometer sanções aos Estados que patrocinam horrores ou que diante deles se omitem "em nome" de divindades. Jogou duro com o oriente médio e com outras regiões. Só que as violações à liberdade religiosa não ocorrem apenas no oriente ou em Estados confessionais. Ocorrem aqui e acolá, e mesmo ao nosso lado.
Hoje foram as Testemunhas de Jeová da Rússia. Amanhã pode ser eu e você.
"O preço da liberdade é a eterna vigilância." (Thomas Jefferson)
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*Wilson Knoner Campos é sócio da Bertol Sociedade de Advogados. Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de Santa Catarina - IASC