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O reequilíbrio dos contratos de concessão em função da covid-19

O setor dos transportes está sendo um dos mais afetados.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Atualizado às 14:22

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I. Cenário Atual

A covid-19 foi declarada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde - OMS. No Brasil, a MP 921, de 7/2/2020, declarou que a covid-19 é emergência de saúde pública de importância internacional; o decreto legislativo 6, de 20/3/2020, reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública do país; e os Governos Estaduais e Municipais, a fim de se evitar a rápida propagação da doença e o colapso da rede de saúde, impuseram diversas restrições à circulação de pessoas, veículos e cargas; à atividade econômica industrial, empresarial e comercial; e, ainda, a eventos artísticos e esportivos. São as chamadas medidas de isolamento social, para se evitar aglomeração de pessoas.

Em face disto, a economia brasileira já padece, sendo esperada uma inevitável recessão.

O setor dos transportes está sendo um dos mais afetados. As Concessionárias do Setor Rodoviário (de Contratos de Concessão comum, patrocinada ou administrativa), por exemplo, sofrem com uma significativa queda do fluxo de veículos leves e pesados pelas rodovias brasileiras e com a consequente redução de suas receitas (sejam via tarifas/cobrança de pedágio ou receitas acessórias).

A Confederação Nacional de Transportes - CNT apontou na "Pesquisa de Impacto no Transporte-covid-19"1 que 85,3% das transportadoras do país registraram queda na atividade; 71,1% delas estão enfrentando problemas de caixa e severo comprometimento da capacidade de realizar os pagamentos correntes (folha de pagamentos, fornecedores, etc.); 53,7% têm recursos para, no máximo, um mês de operação, sendo que 28,2% não suportam 30 dias sem apoio financeiro adicional. E, para agravar o quadro, 69,6% creem que os efeitos da crise serão percebidos por mais de quatro meses.

A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias - ABCR também já estimou para as concessionárias de rodovias federais associadas, uma queda de 57% do fluxo de veículos leves e de 29% de pesados.

Da mesma forma, o setor de transporte coletivo (interno, intermunicipal e interestadual) está sendo drasticamente afetado pelas restrições do Poder Público. O Ministério da Infraestrutura, em Consulta à Advocacia-Geral da União sobre os efeitos da covid-19 no equilíbrio desses contratos de concessão, informou que "o setor de transporte coletivo de passageiros registra queda de aproximadamente 85% na movimentação geral de passageiros" (cf. OFÍCIO 3/2020/DEAP/SFPP). A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros - ABRATI também informou que o serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros opera com menos de 10% da frota em todo o país2. E a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) - que monitorou o impacto da covid-19 no transporte público por ônibus de 279 sistemas urbanos em todo o país (nas 26 capitais, no DF, em 14 regiões metropolitanas e outras cidades de grande, médio e pequeno porte) -, registrou que, entre março e abril de 2020, houve redução média de 80% na quantidade de passageiros transportados por ônibus.3

Sabe-se, ainda, que, além da redução da demanda e da consequente queda da receita das tarifas, a situação das Concessionárias de Transporte Coletivo pode ser ainda mais agravada pelas novas obrigações não previstas, instituídas pelo Poder Público como medida de controle à pandemia, com custos e ônus adicionais ao fluxo de caixa - como a imposição de redução da capacidade de operação, a necessidade de disponibilização de álcool em gel para os usuários, higienização diferenciada e mais frequente, etc. 

Sobre o setor aeroportuário, a Associação Brasileira de Empresas Aéreas - ABEAR informou que suas empresas filiadas registraram em março queda de 75% na demanda por voos domésticos e redução de 95% nas viagens internacionais4; no mês de abril, "a demanda por voos domésticos teve queda de 93,09%" e "a demanda por transporte aéreo de cargas no país recuou 66,86%"5. Já os dados do site Flightradar24, que monitora aeronaves por todo o mundo, informam uma redução de 70% do volume de voos pelo planeta e uma queda de 90% no Brasil6. Assim, em razão dessa expressiva redução do volume de voos, as empresas aéreas também tem registrado significativos prejuízos. E, inevitavelmente, no mesmo passo, as concessionárias de aeroportos sofrem com a redução da receita advinda da operação das empresas aéreas e dos negócios/comércio estabelecidos nos aeroportos, tendo que arcar ainda com os altíssimos custos para manter suas vultuosas estruturas.

Por fim, tem-se as concessionárias de arenas/estádios de todo o país, que, em razão das proibições do Poder Público quanto à realização de shows, feiras, eventos e partidas de futebol, igualmente vem mantendo as suas estruturas e os altos custos associados, sem, contudo, receber as receitas previstas no  fluxo de caixa dos contratos de concessão (como de locação do espaço - gramados, esplanadas e camarotes, venda de ingressos, exploração comercial e estacionamento, etc.). Tais contratos ainda podem merecer adequações nos índices de desempenho que tanto interferem na remuneração devida pelo Poder Público, como também podem gerar penalidades à concessionária, caso não atingidos.

O fato é que  as concessões de modo geral (como as rodoviárias, aeroportuárias, de transporte coletivo ou de arenas) que tenham seu equilíbrio rompido em razão desse superveniente cenário poderão merecer revisão para restabelecê-lo, à luz da equação econômico-financeira e do fluxo de caixa originais do contrato, e observados a matriz de risco contratual e a legislação aplicável.

II. Síntese dos fundamentos legais para revisão dos contratos de concessão, em razão da pandemia

Cada contrato de concessão merecerá uma avaliação técnica e jurídica individualizada para investigação e determinação (i) dos efeitos da pandemia no equilíbrio econômico-financeiro do ajuste, a partir da análise do fluxo de caixa do contrato (descontado pela TIR - Taxa Interna de Retorno do Projeto) ou de um fluxo de caixa marginal (determinado por uma taxa de desconto específica definida em contrato),  com objetiva demonstração do desequilíbrio; e (ii) da possibilidade de sua revisão, à luz da alocação de riscos contratual e legislação pertinente. 

Sobre este segundo ponto, a preservação da equação econômico-financeira dos contratos administrativos, de modo geral, é garantida às partes contratantes pela Constituição Federal (art. 37, XXI) e pela lei 8.666/93 (art. 65, II, "d") - que tornam obrigatória a manutenção, ao longo do período contratual, da relação entre encargos e vantagens estabelecida originalmente pelas partes. Caso essa equação econômico-financeira seja rompida ("na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual"), o contrato administrativo merecerá revisão para recompô-la.  

Destaca-se que, nos contratos de concessão, o serviço público concedido é prestado por "conta e risco" do contratado (cf. art. 2º, incisos II, III e IV, da lei 8.987/95), o que não significa, contudo, que todos os riscos são transferidos à Concessionária ou que o reequilíbrio seja inviável. Na verdade, tal dispositivo da Lei Geral de Concessões previu a possibilidade de se construir nesse tipo de contrato uma matriz de riscos mais individualizada, respeitando-se as especificidades de cada negócio, de modo que os riscos sejam eficientemente distribuídos à parte com maior condição de gerenciá-lo.

Sendo assim, para a verificação do desequilíbrio de um contrato de concessão há que se fazer a análise da matriz de risco contratual estabelecida pelas partes, identificando-se os riscos assumidos pela concessionária (ordinários - que não permitiriam a revisão do contrato) e aqueles fora de sua álea (extraordinários - que determinariam a revisão contratual), além da complementar análise da subsunção dos fatos à legislação que regula os contratos administrativos e as concessões, a saber: a lei 8.666/93, art. 65, II, "d", de aplicação subsidiária à Lei Geral de Concessões 8.987/95 e à Lei de PPPs 11.079/2004 - que não contém previsão específica sobre a tutela dos riscos extraordinários.

Neste ponto, vale dizer do recente entendimento da Advocacia-Geral da União de que a pandemia "pode ser classificada como evento de "força maior" ou "caso fortuito"caracterizando "álea extraordinária"" 7, a ensejar o reequilíbrio contratual, como regra, desde que o contrato não tenha estabelecido uma alocação de riscos diferente da divisão tradicional entre riscos ordinários e extraordinários e que tenha sido avaliado o efetivo impacto sobre as receitas ou despesas dos concessionários.  

De fato, a pandemia da covid-19 pode vir a ser considerada evento de força maior e caso fortuito como também demonstram, por exemplo, o PL 1.179/20208, o PL 2.139/20209 e jurisprudência pátria, que já reconheceu a pandemia do H1N1 como tal, no âmbito do CDC (TJSP Ap. 990.10.243956-9, j.10.2.2011, Des. Rel. Roberto Mac Cracken).

Por fim, destaca-se que o PL 2.139/2020 - apresentado pelo Senador Antônio Anastasia com a expressa intenção de viabilizar a preservação e continuidade dos contratos administrativos por meio da diminuição do passivo contratual de imediato e promoção de instrumentos eficazes de revisão contratual - regulará, se aprovado, o procedimento a ser seguido pelos contratados privados da Administração Pública, inclusive concessionárias, para obtenção do reequilíbrio dos contratos administrativos afetados pela covid-19. Tal procedimento, demandaria, por exemplo, a apresentação de requerimento pela concessionária que exponha, justificadamente, as razões para pleitear o reequilíbrio do contrato, acompanhado de estudos econômicos que comprovem a inviabilidade da manutenção da equação econômico-financeira original.  

Importante comentar também que, em razão da pandemia e de seus efeitos, os contratos de concessão ainda poderão merecer revisão das partes para que sejam ajustados, por exemplo, os índices de medição de desempenho que tenham se tornado incompatíveis com a realidade; para se readequar obrigações contratuais (que, eventualmente, tenham cumprimento comprometido ou impossível) e consequentes penalidades; se postergar investimentos que se tornaram inviáveis, etc. Nesse sentido, o referido PL 2.139/2020 também prevê a apresentação pela concessionária de "plano de contingência", igualmente fundamentado, que assegure a continuidade da execução contratual através de proposta de revisão ou suspensão de obrigações e outros ajustes.

III. Conclusão

Assim, diante de todo esse cenário, deve a concessionária realizar a análise jurídica individualizada da matriz de risco do contrato que firmou e dos demais dispositivos legais a ele  aplicáveis, além das verificações e quantificações técnicas relacionadas aos impactos da pandemia sobre a equação econômico-financeira original do ajuste, de modo a comprovar objetivamente o desequilíbrio, a partir, como dito, do fluxo de caixa do contrato ou de fluxo de caixa marginal (descontado pela TIR do projeto ou taxa específica) e, assim, estar legitimada a perseguir o reequilíbrio contratual.

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1 Disponível aqui. Acesso em 27/5/2020.

7 Parecer 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU. Ressalta, também, a AGU, em relação às medidas de restrição de mobilidade de pessoas e mesmo de suspensão de atividades econômicas que poderiam elas ser classificadas como "fato do príncipe", muito embora a "sua causa tenha sido o potencial de disseminação do vírus e seus impactos sobre a saúde pública". Conclui, na sequência, que "não há na prática maior relevância em tentar distinguir se eventual prejuízo sobre os contratos de concessão seria decorrente de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, pois na regra suas consequências jurídicas seriam as mesmas." E que a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) é evento que caracteriza "álea extraordinária", capaz de justificar a aplicação da teoria da imprevisão".

8 Que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado no período da Covid-19 e coloca em sua justificativa que os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito e força maior.

9 Que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública, no período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) e coloca em sua justificativa a aplicação da teoria da imprevisão e da força maior para os contratos que sofrem os impactos da pandemia.

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*Paula Rodrigues Lara Leite Pianchão é advogada e sócia da Gilberto José Vaz Advogados, especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, membro da Comissão de Arbitragem da OAB/MG.

*Renata Faria Silva Lima é advogada e sócia da Gilberto José Vaz Advogados, mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Grupo de Licitações e Contratos da Comissão de Arbitragem da OAB/MG.

 

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