É possível despejar o locatário durante a pandemia? Análise do veto presidencial à suspensão dos despejos liminares no Regime Jurídico Emergencial e Transitório
A intenção do projeto de lei era louvável e necessária e o veto presidencial caminha em sentido contrário às demais iniciativas legislativas adotadas nos países mais impactados pela pandemia: o aumento do inadimplemento ocasionou uma enxurrada de ações de despejo, que, caso deferidas liminarmente nos termos da Lei do Inquilinato, colocariam na rua um sem número de pessoas, muitas em situação de vulnerabilidade, expondo-as ainda mais aos riscos de contaminação e disseminação da doença.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Atualizado às 14:25
Desde o início das recomendações de isolamento domiciliar em razão da pandemia de COVID-19, diversos trabalhadores e empresários sofreram redução em seus ganhos - pessoas que trabalham no varejo e obtêm parte de seus ganhos com comissões, profissionais liberais e microempresários individuais (MEI) já sentem os efeitos econômicos da crise que não parece ter fim.
Diante de tal fato, como já expusemos em texto anterior (A renegociação de contratos de locação comercial diante da crise do coronavírus), haverá uma onda generalizada de inadimplência na maioria dos ramos de negócio, dentre eles os de locação imobiliária. Muitos proprietários, então, amparados pelo art. 59 da Lei 8.245/1991, pedirão o despejo liminar de seus locatários, que, nos termos do §1º do mesmo dispositivo legal, poderá ser concedido com a observância de alguns requisitos que não nos cabe analisar neste momento.
Entretanto, há um movimento global para suspender as ações de despejo durante o período em que durar a pandemia. Nos Estados Unidos, a maioria dos estados decretou um período de "moratória" dos despejos - gradativamente, tal possibilidade está sendo retomada à medida que se afrouxam as medidas de distanciamento social. Em igual sentido, o Parlamento alemão determinou a suspensão das ações de despejo até o fim de junho de 2020.
No Brasil, tramitou no Congresso Nacional o projeto de lei 1179/2020, que "dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus", e previa, em seu art. 9º, a suspensão dos despejos liminares até o dia 30 de outubro de 2020 - contudo, tal dispositivo foi vetado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Vale lembrar que o veto ainda pode ser derrubado pelo Congresso, em sessão conjunta, caso se obtenha a maioria absoluta de votos das duas casas, computados separadamente.
Assim, em 12 de junho de 2020, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 14.010/20, que não introduziu qualquer alteração às relações locatícias, cujas regras continuam a ser regidas integralmente pela Lei do Inquilinato.
O art. 9º do projeto de lei previa que "não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, §1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245 (...) até 30 de outubro de 2020".
Pontuando, inicialmente, que é impossível prever as consequências concretas da pandemia e até quando a restrição à circulação de pessoas irá perdurar, por evidente que deverá haver um equilíbrio entre direitos de credores/proprietários e devedores/locatários.
De toda sorte, mesmo diante da pandemia e caso o veto seja derrubado pelo Congresso, continuará sendo possível a retomada do imóvel sobretudo em hipóteses que tratam de direitos potestativos, ou seja, que independem da manifestação de vontade da parte contrária, como a possibilidade de retomada para uso próprio (art. 47, III, Lei 8.245/1991).
Embora o veto presidencial não tenha alterado as regras de despejo da Lei do Inquilinato, o Judiciário se movimenta no sentido de indeferir pedidos liminares de despejo, ou, no mínimo, de suspender o seu cumprimento. O Tribunal de Justiça de São Paulo já entendeu pela manutenção de suspensão do despejo liminar:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de despejo por falta de pagamento. Locação residencial. Suspensão da liminar em face da pandemia causa pelo Covid-19. Calamidade pública decretada pelo Governo Federal e quarentena determinada pelo Governo do Estado. Despejo que prejudicaria o cumprimento das orientações feitas pelos órgãos de saúde. Liminar para desocupação do imóvel locado que deve permanecer suspensa. Precedentes. Recurso desprovido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2102322-69.2020.8.26.0000; Relator (a): Milton Carvalho; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José do Rio Preto - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/06/2020; Data de Registro: 10/06/2020).
Vale destacar que a decisão foi fundamentada não no projeto de lei, mas no decreto estadual que previu a quarentena e no reconhecimento da emergência de saúde pública no âmbito federal e que o deferimento do despejo, neste contexto, "estaria em desconformidade com as medidas de saúde vigentes que indicam a necessidade de se reduzir a circulação de pessoas e a permanência no ambiente residencial". Em regra, as liminares de despejo têm sido deferidas, mas seu cumprimento é suspenso até que sejam revogadas as medidas restritivas de circulação de pessoas.
A intenção do projeto de lei era louvável e necessária e o veto presidencial caminha em sentido contrário às demais iniciativas legislativas adotadas nos países mais impactados pela pandemia: o aumento do inadimplemento ocasionou uma enxurrada de ações de despejo, que, caso deferidas liminarmente nos termos da Lei do Inquilinato, colocariam na rua um sem número de pessoas, muitas em situação de vulnerabilidade, expondo-as ainda mais aos riscos de contaminação e disseminação da doença. O Judiciário terá papel preponderante para equalizar tais situações, reequilibrando as relações contratuais.
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*Guilherme Alberge Reis é mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar e Direito Empresarial pelas Faculdades da Indústria. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Advogado e sócio de Reis & Alberge Advogados.