Afinal, admite-se habeas corpus substitutivo de recurso ordinário?
A questão não é pacificada na jurisprudência dos Tribunais Superiores. O plenário do STF passou a admitir as ações em 2018, todavia, as turmas do STJ decidem de maneira divergente sobre o tema
quarta-feira, 10 de junho de 2020
Atualizado em 12 de junho de 2020 10:14
A proposta deste texto é responder ao questionamento do título a partir do entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores. Para contextualizar a questão, relembre-se que, em 2012, a 1ª turma do STF decidiu pela inadequação do habeas corpus quando substitutivo de recurso ordinário, que até então sempre foi aceito. A mudança jurisprudencial foi justificada pelo relator, ministro Marco Aurélio (que logo voltaria atrás sobre a questão), dentre outras coisas, pela sobrecarga de processos (HC 109.956, 1ª turma, DJe 11.09.12). Por outro lado, a 2ª turma, tradicionalmente, não impunha restrição quanto ao cabimento da ação nessas circunstâncias.
O STJ, alicerçado na decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal - STF, passou a não conhecer de writ substitutivo, ressalvando a possibilidade de concessão da ordem de ofício quando houvesse patente ilegalidade. Tal entendimento foi adotado pelas duas turmas criminais do STJ:
"Em consonância com a orientação jurisprudencial da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal - STF, esta Corte não admite habeas corpus substitutivo de recurso próprio, sem prejuízo da concessão da ordem, de ofício, se existir flagrante ilegalidade na liberdade de locomoção do paciente."
(HC 557.865/SP, rel. min. Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, votação unânime, DJe 13.05.20)
"O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em recentes decisões, não admitem mais a utilização do habeas corpus como sucedâneo do meio processual adequado, sejam recursos próprios ou mesmo a revisão criminal, salvo situações excepcionais."
(AgRg no HC 389.528/PR, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 6ª turma, DJe 07.04.17)
Ocorre que, ainda em 2018, o STF decidiu o seguinte: "por maioria de votos, o Tribunal Pleno assentou que é admissível, no âmbito desta Suprema Corte, impetração originária substitutiva de recurso ordinário constitucional" (HC 152.752/PR, rel. min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 27.06.18). No julgamento, destaque-se o argumento do ministro Dias Toffoli, no sentido de que o óbice processual é incoerente, já que é de praxe analisar o writ para eventual concessão de ofício e, mais cedo ou mais tarde, o Tribunal receberia um ROC, no caso de não conhecimento do HC. Além disso, ministro Ricardo Lewandowski registrou que a expansão do uso do habeas corpus, inclusive como substitutivo de recursos e de ação revisional, torna o Judiciário mais eficiente, não mais moroso, o que foi exemplificado com a ação coletiva concedida a mães encarceradas, caso em que sequer existia ato coator do STJ.
Conforme relatado pela pesquisadora Mariana Nunes, depois da decisão mencionada acima, a 1ª turma deixou de ressalvar a inadequação da ação de habeas corpus em substituição ao recurso devido:
"No entanto, com a reafirmação da jurisprudência do pleno no mencionado HC 152.752/PR, curvando-se a Ministra Rosa Weber ao precedente, forma-se maioria na Primeira Turma quanto à possiblidade do habeas substitutivo de recurso ordinário. Em julgados recentes, principalmente da relatoria do Ministro Marco Aurélio, é possível verificar que não consta dos votos a ressalva ao cabimento, ficando o Colegiado tão somente no deferimento ou indeferimento da ordem."1
Apesar da grande repercussão política do caso apreciado no HC 152.752 na mídia (discutia-se a execução provisória do ex-presidente Lula), ao que parece, a decisão não teve a mesma notoriedade pela questão processual decidida. Tanto que os ministros da 5ª turma do STJ continuam fazendo referência à jurisprudência antiga do Supremo para justificar o não conhecimento de habeas corpus substitutivos, inclusive por meio de decisão monocrática.
Numa rápida pesquisa, observamos que todos os ministros da 5ª turma ainda decidem assim reiteradamente. Demonstraremos isso exemplificando alguns processos da relatoria de cada um deles, sempre decisões proferidas na mesma data - que serão apenas exemplificativas, sem compromisso de pesquisa exauriente. Explicitaremos a data do julgamento das decisões colegiadas, em vez da data de publicação, para que o leitor saiba exatamente quando houve a tomada de decisão. Todas as decisões fazem referência expressa ao "entendimento firmado pelo Supremo" (na verdade já superado), muitas vezes na própria ementa.
Apenas em 28.04.20, a 5ª turma confirmou pelo menos cinco decisões monocráticas do ministro Reynaldo Soares da Fonseca que deixaram de conhecer habeas corpus substitutivos de recurso ordinário: AgRg no HC 561.993/PE, AgRg no HC 551.011, AgRg nos EDcl no HC 554.760, AgRg no HC 563.447 e AgRg no HC 539.857.
Da relatoria do ministro Ribeiro Dantas, encontramos dez habeas corpus que a turma deixou de conhecer na sessão de 10.03.20: HC 538.738, HC 539.515, HC 540.297, HC 559.324, HC 558.460, HC 563.256, HC 561.013, HC 506.576, HC 542.780 e HC 540.452. Curiosamente, não foram observadas decisões colegiadas similares posteriores a 11.03.20. Todavia, é possível constatar que o ministro continua a negar conhecimento monocraticamente às ações substitutivas: HC 575.217, HC 574.014, HC 573.162, HC 568.351 e HC 551.262, todos publicados em 15.05.20.
Em 05.05.20, foram no mínimo sete ações do ministro Joel Ilan Paciornik julgadas no mesmo sentido pelo colegiado: HC 559.544, HC 562.531, HC 553.051, HC 553.659, HC 556.428, HC 556.877 e HC 557.865.
O ministro Jorge Mussi, pelo que observamos, não costuma se referir ao entendimento do STF, apesar da grande quantidade de decisões que negam conhecimento a writs substitutivos citando decisões do próprio STJ que, por sua vez, mencionam o suposto entendimento pacificado do STF. Mas ainda assim encontramos três decisões monocráticas publicadas em 30.04.20 que citam o STF diretamente para não conhecer das ações: HC 551.230, HC 548.558 e HC 546.363. De decisão colegiada aponto o HC 518.882, julgado em 11.02.20, a título de exemplo.
Por fim, importa mencionar que o ministro Felix Fischer foi substituído por alguns meses, tendo retornado às suas atividades no fim de março de 2020. Talvez por isso, não existem muitas decisões colegiadas deste ano, mas o ministro também faz as mesmas referências ao STF, conforme as decisões monocráticas que não conheceram dos habeas corpus 577583 e 576562, ambas publicadas em 13.05.20. Ademais, alguns exemplos anteriores à ausência do ministro: HC 510.608, HC 501.692 e HC 506.166, todos julgados em 25.06.19.
Como dito, todas as decisões referidas acima deixam de conhecer writs substitutivos de recursos ordinários afirmando algo como "conforme orientação jurisprudencial do Supremo". Ocorre que, como colocado, desde 2018 o STF assentou a admissibilidade do habeas corpus nessas circunstâncias, em decisão do Tribunal Pleno.
A 6ª turma, por outro lado, nas poucas ementas em que explicita que a ação mandamental foi impetrada como sucedâneo de ROC, não faz qualquer consideração sobre inadequação do meio, a exemplo do HC 436.697, julgado em 19.02.19.
Mas o que mais chama a atenção é que há julgamento recente em que a própria 3ª seção do STJ não faz restrição quanto à adequação desse meio. No âmbito de um habeas corpus substitutivo de recurso ordinário que impugnava decisão do TJ/SP que denegou um habeas corpus contemporâneo à apelação interposta, por exemplo, a única questão de conhecimento discutida foi quanto à possibilidade de impugnação simultânea por meio de apelação e de habeas corpus que buscam o mesmo resultado:
"Sob essa perspectiva, a interposição do recurso cabível contra o ato impugnado e a contemporânea impetração de habeas corpus para igual pretensão somente permitirá o exame do writ se for este destinado à tutela direta da liberdade de locomoção ou se traduzir pedido diverso em relação ao que é objeto do recurso próprio e que reflita mediatamente na liberdade do paciente. Nas demais hipóteses, o habeas corpus não deve ser admitido e o exame das questões idênticas deve ser reservado ao recurso previsto para a hipótese, ainda que a matéria discutida resvale, por via transversa, na liberdade individual."
(HC 482.549/SP, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 11.03.20, DJe 03.04.20)
Embora o ministro Joel Ilan Paciornik tenha apontado no início de seu voto-vista que "trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso próprio", nenhum dos membros da 5ª turma arguiu este fato para sustentar a inadequação da via eleita. No caso, o não conhecimento se deu por supressão de instância e porque o objeto mediato (sentença condenatória) e o objetivo (desclassificação) do writ eram os mesmos da apelação interposta, sendo vedada a dupla impugnação.
Resumidamente, a 3ª seção veda no máximo a impetração de habeas corpus contemporânea ao recurso, sem fazer reserva a ações substitutivas.
Todavia, o que mais chama atenção é que, mesmo depois desse julgamento, ocorrido em 11.03.20, os ministros da 5ª turma, nas sessões de julgamento do colegiado menor, continuam a sustentar a inadequação de habeas corpus manejado como sucedâneo de ROC, "segundo orientação jurisprudencial do STF e do próprio STJ" (HC 559.544/SP, rel. min. Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, julgado em 05.05.20, DJe 11.05.20).
Se por um lado é possível cogitar que os ministros 5ª turma continuam fazendo referência ao entendimento superado do STF por desconhecimento, por outro, não há como presumir que ignoram os precedentes do órgão colegiado maior que compõem. Desse modo, não é possível inferir o motivo da incoerência entre a forma como os ministros decidem na 5ª turma e na 3ª seção.
Portanto, em resposta ao questionamento proposto, a divergência entre as turmas do STF sobre a adequação de writ substitutivo de recurso ordinário foi pacificada em 2018, com o julgamento do HC 152.752, quando o Tribunal Pleno entendeu ser admissível por maioria. A ação impetrada nessa circunstância somente não é admitida pela 5ª turma do STJ, embora a 6ª turma e a própria 3ª seção daquele tribunal não apontem óbice para o efetivo conhecimento.
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*Pedro Machado de Almeida Castro é advogado mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
*Vinícius André de Sousa é advogado pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).