Habeas corpus e o acordo de não persecução penal
Os institutos de justiça penal negocial devem atender às finalidades de um Direito Penal mais fragmentário, buscando conferir maior eficiência ao sistema de justiça criminal e, até mesmo, oferecer novas estratégias de defesa ao cidadão.
quarta-feira, 10 de junho de 2020
Atualizado às 13:50
A lei 13.964/2019, também conhecida como "Pacote Anticrime", acompanhou as tendências legislativas recentes ao estipular um novo instituto de justiça penal negocial. Trata-se do acordo de não persecução penal, que passa a ser previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal.
Embora tenha sido estipulado pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico no art. 18 da resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, o acordo de não persecução penal só passou a ter força legal na lei 13.964/2019.
Diante dessa inovação legislativa, os Tribunais devem se deparar com os mesmos questionamentos que suscitaram controvérsias quando da entrada em vigor da lei 9.099/1995, que estipulou a transação penal e a suspensão condicional do processo. Dentre eles, é de suma importância a discussão do cabimento do habeas corpus mesmo com a celebração de um pacto negocial com o Ministério Público, no caso, o acordo de não persecução penal.
Dentre os institutos consensuais do processo penal, o que mais se assemelha à novidade trazida pela lei 13.964/2019 é a transação penal, uma vez que ambos são aplicados na fase pré-processual, ou seja, quando não há ação penal deflagrada.
Ao contrário da transação penal, prevista na lei 9.099/1995, o acordo de não persecução pode ser firmado entre o Ministério Público e o jurisdicionado quando: não for o caso de arquivamento; a pena mínima for inferior a 4 anos (já consideradas as causas de aumento e de diminuição); a suposta infração penal tiver sido cometida sem violência ou grave ameaça, bem como não tiver sido praticada no contexto de violência doméstica ou familiar; o investigado não for reincidente e ter confessado o "crime" formal e circunstancialmente.
Apesar de ser um instituto que tem como base o consenso, o Ministério Público e o Poder Judiciário devem estar atentos para exercerem o controle de legalidade da aplicação do acordo de não persecução e de toda a investigação preliminar que a precedeu, de forma a tutelar os direitos fundamentais do investigado e não comprometer o caráter voluntário do acordo.
Antes de propor o pacto com o investigado, o Ministério Público, em sua indeclinável função fiscalizatória, deve realizar o controle de legalidade da investigação de modo a verificar se: não é o caso de arquivamento; há justa causa; o fato é típico; há alguma causa excludente de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade; houve alguma nulidade no curso da investigação ou ilicitude de prova; foram respeitadas todas as regras de competência; há materialidade e indícios de autoria suficientes para um eventual oferecimento de denúncia.
Em um segundo momento, tal controle de legalidade e voluntariedade cabe ao juiz, quando fizer uma análise da homologação, nos termos do §4º do artigo 28-A do CPP1.
Nesse contexto, ainda que o acordo tenha sido homologado, o jurisdicionado não fica cerceado do direito de discutir a legalidade e a presença de todos os pressupostos processuais de uma ação penal pela via do habeas corpus.
Ocorre lembrar que - embora voluntária - a celebração do acordo pode não ser a principal opção do investigado, que, para se ver livre das agruras de ser submetido a um processo penal, optou por pactuar com o Ministério Público a cumprir certas obrigações que comprometem a sua liberdade de ir e vir.
Dessa forma, se não há previsão legal, a existência de um acordo de não persecução penal, por si só, não caracteriza a renúncia ao direito constitucional de acesso à justiça.
Isso porque, ausentes os pressupostos processuais da ação penal, o próprio acordo não pode ser firmado.
Em razão do pouco tempo em vigor do acordo de não persecução penal, deve-se compreender o cabimento do habeas corpus à luz dos precedentes dos outros institutos de justiça penal negocial.
A propósito, por unanimidade, a segunda turma do STF, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, em 17/12/2019, decidiu que a aceitação de transação penal não impede o exame de habeas corpus para questionar a legitimidade da persecução penal.2
Esse julgado é de suma relevância ao debate aqui trazido, uma vez que, assim como na transação, o acordo de não persecução é firmado antes de haver ação penal e, no caso, o STF decidiu que as próprias obrigações da transação e a possibilidade de oferecimento de denúncia, caso elas sejam descumpridas, sem a presença dos pressupostos processuais, caracterizam constrangimento ilegal suficiente para colocar em risco a liberdade do paciente.
No mesmo sentido é o entendimento de que a celebração da suspensão condicional do processo não impede a análise de alguma das hipóteses ensejadoras do habeas corpus.3
Os institutos de justiça penal negocial devem atender às finalidades de um Direito Penal mais fragmentário, buscando conferir maior eficiência ao sistema de justiça criminal e, até mesmo, oferecer novas estratégias de defesa ao cidadão.
No entanto, não podem ser utilizados para legitimar ou ocultar condutas estatais que desrespeitam os direitos fundamentais e o devido processo legal e, quando isso acontece, deve-se recorrer à matriz do processo constitucional brasileiro, o habeas corpus.
1 "Art. 28-A. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (...)
§4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade."
2 HC 176785.
3 RHC 48.443, rel. min. Sebastião Reis Júnior, DJe 5/2/2015; RHC 62.036, rel. min. Maria Thereza, DJe 11/9/2015; RHC 35.258, rel. min. Rogério Schietti Machado Cruz, DJe 3/2/2015.
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*Dimas Fagundes é advogado e sócio do escritório Fagundes Garcia Advogados; mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e membro associado do IBCCRIM.
*Victor Garcia é advogado e sócio do escritório Fagundes Garcia Advogados e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF).
*Victor Chebli é graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora e trainee do escritório Fagundes Garcia Advogados.